Do B2C ao Atacado

Um passo em direção à inevitável unificação sistêmica das atividades comerciais

No Brasil, o varejo virtual e o físico ainda não se comunicam. Cada um deles mantém suas próprias estruturas administrativas, tecnológicas e físicas que, certamente, constitui um desperdício. Há fortes razões a justificar esta indesejável separação, entre elas duas se destacam: a cultural e a tecnológica.

Quanto à cultura, o gradual processo de concentração do mercado de varejo físico obrigou as grandes redes de lojas à alta especialização de suas estruturas e processos no afã de aumentar seus ganhos de escala. Este processo elevou lucratividade, porém tornou-se um grande obstáculo à absorção das novas formas de comercialização requeridas pelo varejo virtual. Como, no início, havia muita incerteza em relação ao futuro do varejo virtual, a primeira reação de quase todas as grandes redes foi banalizar o novo modelo de comercialização admitindo-o como uma variante do processo vigente. Esta visão conservadora foi, gradualmente, contestada pela ampla liderança de mercado de e-commerce pelas lojas puramente virtuais.

Quanto à tecnologia, poucos se apercebem que quanto mais abrangente e integrado for o sistema de informações (TI) menor será sua flexibilidade, agravada quando novas funcionalidades são incorporadas a posteriori. Nas grandes redes de lojas físicas, a crescente e volúvel inclusão de serviços (principalmente financeiros) como itens de venda acentuou a complexidade e a vulnerabilidade dos sistemas corporativos e elevou seu nível de rigidez – o que vulgarmente tem sido considerado uma vanguarda, com o tempo transforma-se em resistência à mudança.

Estas armadilhas involuntárias não são de fácil superação – as fusões de redes demonstram a dificuldade de unificação dos sistemas. Em médio prazo, está descartada a substituição pura e simples dos sistemas integrados do grande varejo abarcando tanto o físico quanto o virtual, principalmente pela inexistência de soluções de mercado e pela incapacidade do desenvolvimento de soluções in house.

Este artigo tem a pretensão de mostrar uma forma de expansão do varejo eletrônico aproximando-se gradualmente do físico sem descaracterizar-se, ou seja, com grande aproveitamento das estruturas físicas, comerciais e tecnológicas. Para tanto, o artigo explora a possibilidade de junção do e-commerce com o Atacado (um elo da cadeia de distribuição), contando com as categorias existentes no B2C.

A – Uma integração natural e muito específica

As redes de livrarias distribuem os exemplares comprados das editoras pelas suas lojas físicas e, com raras exceções, elas não dispõem de um centro de distribuição para abastecer seus pontos de venda. Com tal distribuição, é de ser esperar desbalanceamentos locais, ou seja, lojas que vendem muito determinado livro e perdem venda por ruptura de seus estoques, enquanto outras que o possuem não o vendem. Assim sendo, conhecer a posição de estoque de cada loja é uma necessidade natural para a rentabilidade da rede de modo a reabastecê-las com a máxima brevidade através de transferências. Em outros termos, a expansão da rede de livrarias, fenômeno relativamente recente, exige um sistema integrado de informações.

Qual a razão deste modelo não ter sido estendido a outras mercadorias, por exemplo, vestuário? A explicação está associada às particularidades da mercadoria. O livro tem características especiais: vida útil muito longa, grande diversidade (cauda longa), fácil armazenagem e manipulação, exemplares de uma edição perfeitamente identificados pelas editoras (ISBN), produzido em lote e para estoque, venda decrescente e contínua ao longo do tempo. O grande problema é que os sistemas integrados desenvolvidos pelas redes foram especificamente orientados para o controle de livros, um tipo de mercadoria muito especial não se prestando a outras finalidades. As excepcionalidades explicam o sucesso da integração, o livro é tão bem comportado que serviu de base para o desenvolvimento do e-commerce juntamente com CD e VHS. Infelizmente, esta bem sucedida experiência de integração de rede de lojas físicas não pode se generalizar.

B – Algumas tentativas de integração originadas por lojas virtuais

Sem qualquer alteração significativa nos processos, as lojas virtuais que fazem parte de uma rede de lojas físicas ainda tentam alguma forma de integração com resultados pouco significativos, entre elas destacam-se:

  1. A entrega da loja virtual, opcionalmente feita numa das lojas da rede. Esta alternativa não teve grande aceitação, exceto em categorias de cauda longa e compra contínua (bebidas e livros), artigos em que o cliente costuma ser assíduo frequentador da loja para saber oportunidades e curtir novidades. Este tipo de entrega dificulta o rastreamento, pois a responsabilidade da transportadora acaba antes da entrega ao consumidor, além disso, reduz um dos diferenciais do varejo eletrônico, a comodidade.
  2. A instalação de quiosques nas lojas físicas com a finalidade de ampliar a variedade da oferta local disponível e, em casos mais radicais, transformar a loja física tão somente num mostruário com expressiva redução do espaço (portanto, custo). Este procedimento é muito antigo, uma mera extensão do que sempre foi praticado pelos supermercados para itens impossíveis de serem transportados pelo consumidor no ato da compra.
  3. A incorporação do Atacado à direção da loja virtual, porém, sem qualquer outra sinergia entre eles. As estruturas e processos (comercial, estoque, SAC e transportes) são independentes. Neste caso, não há outras vantagens exceto o poder de compra e a força da marca.
  4. A transferência da lista de casamento conseguida pelas lojas físicas para atendimento pela loja virtual.

C – Vantagens

Seguem as vantagens da integração com alto grau de sinergia entre o B2C e o Atacado.

1. Aumento da escala

Os benefícios do aumento do nível de atividade provocada pela inclusão da demanda do Atacado estendem-se a todos os demais canais.

Capital de giro: a incorporação do Atacado ao B2C permite regularizar a demanda dando maior certitude à reposição de estoque, com isso, espera-se que a cobertura de estoque seja diminuída.

Armazenagem: a melhoria da capacidade de prever a distribuição da demanda resultante do conhecimento do comportamento dos clientes segundo sua localização permite aproximar fisicamente a oferta da demanda tirando proveito dos depósitos regionais.

Transporte: o aumento da demanda de carga melhora a condição de negociação do frete do embarcador com as transportadoras, pois, quanto maior for o volume e a regularidade da demanda da carga do embarcador, menor será a incerteza do transportador no uso de seus ativos.

Poder de compra: o preço unitário de compra decresce em relação ao aumento da quantidade comprada possibilitando o repasse de parte do desconto aos varejistas.

2. Incorporação da demanda do Atacado nos algoritmos de reposição de estoque

Mantendo-se a área de Compras centralizada, assim como os armazéns regionalmente distribuídos, o aumento da regularidade da demanda derivada da introdução da demanda Atacado (garantida pela visita periódica dos vendedores) em nada mudará os procedimentos de compra. Para Compras, não importa o canal de venda, importa o comportamento da demanda agregada dos canais de venda, o nível de certeza do prazo de entrega, o nível de cobertura de estoque e o valor unitário.

3. Atingir indiretamente consumidores, até então, insensíveis ao e-commerce

O cliente do pequeno varejo, via de regra, não é atingido pelo e-commerce, ele somente pode ser atendido por pequenas lojas físicas dotadas de estoque para pronta entrega, praticando modalidades de pagamento que o consumidor pode pagar (muitas parcelas com juros exorbitantes). É este público que, indiretamente, o Atacado busca atingir.

4. Melhorar o sortimento dos armazéns regionais

Certamente, o sortimento do Atacado é muito restrito e altamente seletivo. Tal limitação é essencial para o modelo funcionar devido à imposição da reserva de estoque a ser feita no front da loja a fim de garantir o atendimento. Este procedimento deve aumentar a disponibilidade de estoque dos armazéns regionais, beneficiando indiretamente o B2C reduzindo os custos unitários fixos dos armazéns.

5. Adiantando tendências

O site específico para o Atacado, a ser usado pelos vendedores/representantes e operadores de televenda, deverá ser o precursor do que ainda virá no e-commerce com a personalização da venda (ofertas adequadas ao comportamento do cliente, fato desconsiderado pelo site devido à necessidade de alto desempenho).

 D – O que manter, incluir e alterar

 1. Restrição da variedade

A variedade de itens do B2Cé muito superior a do Atacado e todos os itens do Atacado são vendidos no B2C. Desta forma, para atender os varejistas físicos será necessário ao B2C restringir a variedade da oferta selecionando itens típicos do mercado-alvo, portanto, sem qualquer alteração na área de Compras.

2. Funcionalidade a serem alteradas

Devem ser aproveitados todos os serviços de apoio ao B2C, exceto, a captura dos pedidos (seja por vendedores ou por televenda) e o fluxo anterior ao atendimento físico dos pedidos de venda.

3. A captura dos pedidos de venda

O site deverá incluir regras comerciais próprias do mercado de atacado associadas à personalização do cliente, portanto muito mais sofisticadas do que aquelas em uso no B2C e que, certamente, serão a ele incorporadas futuro.

4. O crédito

O B2C não tem análise de crédito por vender através de pagamento antecipado, conta apenas com análise de fraude para autenticar os cartões. Como o Atacado admite pagamento a prazo (a entrega da mercadoria precede o pagamento), daí a necessidade de análise criteriosa para a concessão de crédito como condição indispensável de aceitação do pedido de venda considerando: o potencial de endividamento do cliente, os títulos de pagamento a vencer e vencidos, os pedidos em carteira e existência de juros vencidos. Esta analise é condição necessária para o prosseguindo o atendimento de pedidos e deverá ser efetuada em tempo real pelo site.

5. A política comercial

A política comercial do B2C é muito restrita, atém-se a apenas três variáveis; preço, valor do frete e financiamento da compra. Para o atacado as regras comerciais a serem praticadas pelo site são muito mais sofisticadas tendo em vista o mercado fortemente concorrencial e a capacidade de negociação do cliente: desconto por quantidade comprada, desconto por fidelidade, desconto por mix de itens comprados, tabelas de preço por região de ICMS, diversas condições de pagamento associadas a juros etc. Tais necessidades, juntamente com análise de crédito, integram o site e constituem-se em filtros necessários e precedentes da reserva de estoque.

6. A reserva de estoque

É fundamental que a reserva seja feita quando da captura dos pedidos (tal como no B2C). Para tanto, o pedido tem que ser comercialmente aprovado e sem restrições de crédito. Como decorrência fundamental, os canais B2C e Atacado deverão disputar simultaneamente o mesmo estoque.

7. O corpo de vendas

O Atacado exige um corpo de vendedores e/ou representantes comissionados, cada um deles atuando numa área previamente configurada e exclusiva. Para tanto, há necessidade estender a política comercial incluindo regras sobre o comissionamento de vendedores, a programação e controle da prospecção de clientes e controle do desempenho das vendas. Paralelamente à venda presencial, é importante a utilização da televenda ciclicamente contatando clientes e assim dispensando o uso da internet na captura do pedido pelo vendedor.

8. O processamento do pedido

O processamento do pedido no site deverá ser bem mais intenso em processo do que no B2C, acessando com mais frequência o banco de dados, porém sem a preocupação de desempenho tendo em vista que volume de pedidos deve ser pequeno quando comparado ao B2C, porém, com muitos itens e ticket muito mais elevado.  O processamento do pedido no Back-Office sofre alterações apenas de roteiro.

E – Considerações finais

  • O comércio eletrônico é muito mais exigente que o físico do ponto de vista tecnológico e seu sortimento do B2C incorpora, folgadamente, sortimento normalmente oferecido por uma operação associada de Atacado.
  • A demanda de pessoas jurídicas (clientes do Atacado) é contínua e regular devido à redução da variedade e a periodicidade da demanda garantida pela visita dos vendedores.
  • As grandes lojas virtuais têm oportunidade de incorporar as operações de Atacado com baixo índice de agressão aos seus processos e estruturas
  • A centralização do estoque a ser disputado pelo B2C e Atacado em tempo real é indispensável para o processamento integrado deles.
  • As áreas funcionais a serem integralmente preservadas com a incorporação do Atacado são: Comercial, Logística Interna – WMS (quem separa o fracionado, separa o agregado, embora o contrário não seja necessariamente verdadeiro), o Transporte e o SAC.
  • A incorporação do Atacado implica o aumento da demanda, conseqüentemente, do poder de compra e da rentabilidade do capital investido em infra-estrutura.
  • O site tem que ser redesenhado especialmente para o atendimento de pedidos de pessoas jurídicas (regras fiscais diferenciadas), incorporando em tempo real a análise Comercial (validação das condições de venda) e análise de Crédito, permitindo a reserva imediata de estoque a garantir a entrega.
  • A incorporação do Atacado ao B2C se configura como um passo inicial em direção à inevitável unificação sistêmica de todas as atividades comerciais e canais.

Fernando Di Giorgi Maio de 2014

 

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