A intensificação tecnológica no comércio e a aceleração da concentração do mercado

Este artigo visa colocar em discussão a acentuação da tendência oligopolista do comércio impulsionada pelo comércio eletrônico e suas consequências sobre os pequenos vendedores. Na introdução, uso um exemplo prático de análise de mercado para em seguida, e de modo sumário, discorrer sobre modelos de crescimento mais usuais, tomando o comércio como referência. Na sequência, exponho as razões pelas quais o comércio eletrônico tende a comportar poucas grandes empresas, realçando a barreira tecnológica, a capacidade de investimento e a venda de mercadorias de terceiros pelas grandes lojas. A mudanças das regras competitivas introduzidas pelos marketplaces e suas graves sequelas concluem o texto.

Introdução

Quando o serviço de transporte de passageiros por automóvel[1] começou a ser desregulado (entrada do Uber), pouco se falava sobre qual seria a estrutura deste mercado: concorrência perfeita, muitas pequenas empresas sem barreira de entrada; monopólio, empresa única com forte barreira de entrada; ou oligopólio, poucas empresas dominantes com barreiras de entrada. Para responder esta questão, era preciso identificar os fatores determinantes do serviço prestado, considerando que a plataforma não era inovadora em termos tecnológicos. Tais fatores, do ponto de vista do consumidor seriam: a redução do tempo de espera e do valor a pagar, além da segurança[2]. Os dois primeiros fatores somente poderiam ser atingidos contando com a ociosidade da oferta de modo a manter a probabilidade da disponibilidade de veículos em nível elevado nas imediações do local da demanda. Em outros termos, uma frota abundante. Como não é possível haver uma grande quantidade de empresas com frota abundante, o mercado somente poderia comportar poucas e grandes empresas.

Modelos de crescimento

O retorno sobre o capital adiantado em seu negócio positivo e superior ao da concorrência é a razão de ser de qualquer empresa com fins lucrativos. Admitindo-se a lucratividade crescente e a opção pelo reinvestimento, a questão crucial é a escolha da estratégia de crescimento: onde pôr o dinheiro? Uma boa resposta à alocação de recursos é mais difícil do que a reversão de prejuízos, visto que estes são passíveis de análise objetiva, enquanto o investimento pressupõe a construção de um cenário futuro. Entre muitos fatores a resposta implica o profundo conhecimento das características do mercado e das competências internas. Sem a pretensão de aprofundar um assunto tão vasto, a título de esclarecimento e focando a área comercial, seguem alguns modelos de crescimento mais frequentes.

Inovação

A estratégia de crescimento por meio da inovação é mais rara e de grande efeito. O termo inovação é muito elástico e é preferível usá-lo para o que foi verdadeiramente revolucionário: a máquina a vapor; a ferrovia; o processo de Bessemer para a produção de aço; os motores elétricos, o motor a combustão, o transistor, o microprocessador etc. Tais inovações foram capazes de mudar e gerar ganhos de produtividade em todos os setores da economia a partir da inclusão de um insumo barato de uso generalizado. Com este pensar, o comércio eletrônico é uma inovação incremental dentro da revolução tecnológica provocada pelo microprocessador Intel em 1971 [3].

Competência específica

Há estratégias de crescimento dependentes em algumas competências específicas (técnica, científica, mercadológica etc.) de empresas dando-lhes condições de aumentar sua participação no mercado. Neste caso, as possibilidades de sobrevivência autônoma tornam-se difíceis caso não o leque de competências não seja ampliado. Caso típico de empresas de software essencialmente (por vezes, exclusivamente) caracterizadas por competência técnica e funcional (alguns exemplos: o front ATG em 2010 e o back-office Retail em 2005 foram comprados pela Oracle, o front Hybris foi comprado pela SAP em 2013)[4].

Diversificação (economia de escopo)

Um exemplo elucida o modelo: a diversificação das fontes de receita das grandes lojas do varejo eletrônico por meio da internalização de funções inerentes ao processo de venda (prevenção de fraude, pagamentos, fulfillment, atendimento pós-venda e propaganda) deve-se ao extraordinário aumento do volume de pedidos decorrentes da venda de mercadorias de terceiros e a competências tecnológicas preexistentes (ou pela aquisição de empresas especializadas). Verticalização decorrente da escala de produção e de competências preexistentes.

Ganho de escala

A estratégia de crescimento mais comum é por meio do aumento do nível de atividades: mantidas constantes as condições operacionais, o custo de produção cai em função do aumento das unidades vendidas. Vendendo a preço de mercado e com menor custo de produção, a margem de lucro aumenta. Aumentar a participação de mercado pode provir de criteriosa redução do preço de venda. Mesmo em condições de produção muito competitivas, há limitantes a considerar: (i)a capacidade de produção (instalações, maquinário, mão de obra especializada, a capacidade de fornecimento etc.) e (ii) o nível da demanda global, determinada por fatores que transcendem aos produtores individuais.

Aquisição

Este modelo poderia ser enquadrado numa fusão entre ‘Competências específicas” e “Ganho de escala”. A competência especifica da adquirente é a disponibilidade de capital, seja próprio ou de fundos de investimento[5]. A competência específica da adquirida é aquela que a adquirente deseja obter (exemplo: compra da Zappos pela Amazon). Quando a empresa adquirida for do mesmo ramo de atividade, o ganho de escala seria resultado da absorção da demanda (por vezes, comprar para fechar, por exemplo: compra da Xtech pela Vtex)). Este é o modelo de expansão mais comum e, potencialmente, nocivo por “erodir a competição” [6].

Oligopolização comercial

A base do poder monopolista das grandes redes de distribuição resumia-se na extensão de seus pontos de venda, seja pela abertura de lojas, seja pela incorporação de outras redes. Com o e-commerce, as novas bases do poder monopolista do comércio passam a ser o tráfego, a tecnologia de informação e a logística, todas elas centralmente dependentes do uso do capital fixo pela expressiva redução da mão de obra. Como decorrência, o grau de concentração de mercado, os ganhos de escala e a oferta de serviços foram intensificados.

A destruição do poder de monopólio das lojas físicas

O poder de negociação das redes de lojas frente aos seus fornecedores é função de seu poder de distribuição. Um exemplo clássico é o sucesso do Walmart (1962): a grande expansão dos pontos de venda visando a capturar a demanda do entorno de cada um deles, praticando preços abaixo do mercado. O aumento do poder de compra, permitia-lhe o privilégio de operar a partir de menores preços de aquisição em função da quantidade adquirida. Tal vantagem, em parte, era repassada ao consumidor, garantindo sua fidelização. O aumento da participação de mercado (captura da demanda de concorrentes) resultava da centralização das compras e o investimento contínuo em novas instalações (mão de obra intensiva).

Em determinadas categorias de mercadorias, a loja virtual enfraqueceu o poder de pressão das redes de lojas físicas por estar diuturnamente aberta em ponto de venda contíguo a qualquer loja física concorrente. A vantagem logística do ponto de venda físico foi parcialmente eliminada e, por conseguinte, a redução do capital comercial na forma de estoque. O crescimento do volume de vendas da Amazon em relação ao do Walmart mostra bem este fato, muito embora a reação das grandes redes vem sendo vender itens de alto giro nas lojas físicas (mercadorias de consumo regular), os de giro baixo por meio da loja virtual e os intermediários sendo atendidos pela loja virtual com entrega na loja física.

A barreira tecnológica do comércio eletrônico

A difusão da tecnologia no e-commerce será mais rápida do que foi a difusão dos ERPs (Sistemas Corporativos Integrados Empresariais) na década de 90. Estes modelaram processos físicos e suas decorrências de controle e gerenciamento[7]. A base material controlada pelos sistemas de gestão integral do comércio eletrônico é menor do que na indústria, porém, a intensificação tecnológica é maior do que no comércio tradicional, tornando seu sistema de gestão mais próximo dos sistemas financeiros, cuja capacidade de mudança dispensa comentários. Disso deriva a vantagem competitiva das grandes lojas virtuais, pois elas rapidamente conseguem “pôr em funcionamento” as inovações tecnológicas, visto que sua ligação com o mercado é predominantemente digital.

Para resumir o argumento, segue um exemplo extremo: a análise de dados, tão em voga hoje, é um privilégio reservado a quem tem recursos para contratar estatísticos, programadores de machine learning e experts em e-commerce capazes de formular modelos, construir algoritmos e interpretar os dados – pequenas e médias lojas virtuais estão longe destes recursos competitivos, inclusive por terem base de dados restrita.

Desenvolvimento próprio

Outra característica importante do comércio eletrônico[8] é que sua plataforma tecnológica vem sendo desenvolvida pelas próprias empresas monopolistas do ramo (por vezes através de compra de empresas desenvolvedoras) e não por empresas de software, como foi o caso dos grandes ERPs[9]. Ao se libertarem da inércia, das conveniências políticas das empresas e da cessão de conhecimentos às produtoras de software, as plataformas tornam-se mais ágeis na manutenção e na inclusão de novas funcionalidades, convertendo-se num importante fator de diferenciação.

Intensificação tecnológica

O canal de vendas virtual é forçado a intensificar a utilização da tecnologia com o propósito de reduzir o capital circulante, reduzir custos salariais e aumentar seu conhecimento de mercado. Tal intensificação tecnológica eleva substancialmente o capital fixo (que inclui a plataforma tecnológica). Tal fenômeno é evidenciado pela não distribuição de dividendos das grandes lojas, seja por reinvestimento, seja por prejuízos cobertos por aportes dos acionistas[10].

Audiência e redução do capital circulante

A estratégia usada para aumentar a audiência pela via da ampliação da variedade da oferta entrou em contradição com os custos logísticos. Tal conflito foi resolvido apropriando-se de parte do faturamento na venda de mercadoria de terceiros com o uso da plataforma (conhecimento codificado e imaterial ocioso) como intermediária. Assim, a fuga da mercadoria própria como necessidade e não como opção, resulta da essencialidade da redução do capital mercantil (sobretudo estoques), da viabilização dos investimentos em tecnologia e da continuidade da estratégia de aumento da audiência via variedade da oferta, agora possível às custas de uma multidão de pequenos vendedores.

Integração total de processos

O alto nível de sistematização e integração de processos e de automação das atividades, associados à rapidez da instalação, aceleram o ritmo de trabalho e aprofundam o fosso a separar as empresas monopolistas do comércio eletrônico das demais lojas que o compõem, fenômeno que está na base da exploração destas por aquelas.

Marketplace e a tendência à oligopolização

Neste texto, o conceito de marketplace será ampliado. Será considerado como toda plataforma de TI agregadora de ofertantes de serviços e/ou mercadorias destinada a capturar a demanda e associá-la a um ofertante mediante uma seleção por ela estabelecida. Tal conciliação pode ser feita diretamente pelo demandante baseada em dados das ofertas e classificação dos ofertantes ou pela própria plataforma segundo particularidades das partes por ela conhecidas.[11]

As lojas virtuais invadiram a reserva territorial das lojas físicas. Os marketplaces, como estações orbitais, colonizaram o espaço por onde trafegam as ofertas das lojas virtuais e tarifam regiamente a hospedagem

Mercados controlados

Os marketplaces não se configuram como mercados naturais nos quais a entrada e saída de vendedores são livres e sujeitas à concorrência comercial sem interferências. Nos marketplaces, as lojas âncora (proprietárias dos marketplaces) filtram lojistas candidatos a fazerem parte de seu mercado; estabelecem taxas de serviços diferenciadas dependentes da marca do lojista, das categorias e da variedade de suas ofertas; determinam a reputação de seus lojistas (fator relevante na escolha dos consumidores) segundo regras pouco transparentes; e relacionam-se seletivamente com seus lojistas de acordo com o grau de adesão de cada um deles a suas campanhas de venda; propõem contratos cujas cláusulas podem ser alteradas a qualquer momento e consideradas automaticamente aceitas por decurso de prazo etc.

Busca por item

Um consumidor, ao entrar num marketplace, interessa-se por um item (ou artigo) e para tanto, faz uso de um motor de busca cujo algoritmo está além do conhecimento dos lojistas e consumidores. Obtido o item e fornecido o CEP, o consumidor se vê diante de uma oferta dominante segundo critérios do marketplace (em geral, considerando as variáveis preço, frete, reputação e prazo) e, caso queira, tem oportunidade de consultar as ofertas de outros vendedores. Admite-se que o primeiro classificado tenha 80% de possibilidade de ser escolhido.

Concorrência por preço

Tendo como premissas: ao longo do tempo, as lojas que sobrevivem se equiparam em termos de qualidade de serviço pós-venda; as despesas com frete, salvo exceções, são determinadas por empresas especificamente dedicadas a otimizá-lo por oferta, então, a concorrência se resume à soma do preço com o frete, sendo o prazo de entrega como fator de desempate. Este modelo conduz à guerra de preço. Isso explica parte da profusão de ofertas únicas mediante artifícios usados na nomenclatura das mercadorias.

Expulsão dos mais frágeis

Sabemos que o preço de aquisição de uma mercadoria por um lojista (i) depende diretamente da quantidade comprada, (ii) que o preço de venda tem que ser superior à soma do custo unitário fixo com o preço de aquisição, (iii) que o custo unitário fixo tem relação direta com o volume vendido. Assim, o grande comprador tem maior margem de manobra na fixação do preço em relação ao preço de mercado. Com isso, a competição por preço tende a expulsar do mercado os pequenos lojistas. Este processo natural de concentração acentuou-se com o fortalecimento das grandes lojas ao se transformarem em marketplaces promovendo a concorrência por item.

A concorrência entre os marketplaces

A concorrência entre os marketplaces depende da qualidade dos serviços de sua loja âncora, da quantidade e variedade de suas ofertas. Tendo como pressuposto o prestígio da marca do marketplace, o preço das ofertas (fator fundamental na preferência dos consumidores), resulta da ampliação e qualificação dos vendedores. Assim, a atratividade de um marketplace é determinada pela competição que se realiza dentro dele. Na briga entre marketplaces, terá mais força aquele que mais promover a competição entre seus próprios vendedores. Citando um dito popular: “na briga entre a onda e o rochedo, quem leva a pior é o marisco”[12].

Marketplace como banco

Os marketplaces, em sua diversificação de serviços, estão financiando o capital de giro de seus vendedores com taxas inferiores às do mercado. Nada é para menos, pois, de cada um de seus vendedores, eles dispõem do histórico de vendas, conhecem o nível de qualidade de seus serviços e contam com garantias reais (“a receber” dos vendedores) possibilitando um ‘encontro de contas”. Porém, trata-se de um reconhecimento concreto da gradual descapitalização dos vendedores decorrente do modelo concorrencial baseado em preço[13]. .

Isto posto, fica a pergunta que divide opiniões: há possibilidade de existência de pequenas lojas virtuais fora dos marketplaces? A responda é positiva, porém não para todos. Pequenos e médios[14] lojistas virtuais constituem a razão de ser dos marketplaces, assim, estes se obrigam a zelar pela continuidade da sobrevivência daqueles. Mas, quais seriam os segmentos de atuação dos pequenos lojistas? Considerando o inevitável processo de concentração empresarial nos mercados de alta rentabilidade, eles somente deverão operar em segmentos de mercado verdadeiramente competitivos, caracterizados pela ausência de barreiras de entrada e intensivos em mão de obra, em outros termos, cuja lucratividade situa-se no nível da sobrevivência.

Finalizando, vale a pena observar o que diz uma reportagem sobre os resultados do Magazine Luiza em 2019. “Segundo Trajano (diretor presidente), a expectativa é que o crescimento acelerado da Companhia se intensifique, com foco em novas categorias [ampliação da variedade] e no marketplace, além do avanço no número de sellers [vendedores presentes no marketplace]”. Nas palavras do diretor-presidente: “Vamos continuar investindo em mais lojas, em tecnologia e continuar também com o plano de aquisições. Estamos bem abastecidos de caixa [capital disponível] em uma posição confortável para continuar crescendo e investido de maneira agressiva.” [15].

 

Fernando Di Giorgi,
fevereiro de 2020

 

 

[1] Um serviço homogêneo, não passível de diferenciação.

[2] Quanto à segurança, a avalição do serviço diretamente pelo consumidor a cada corrida permite classificar os motoristas ao selecioná-los para atender a demanda.

[3] PÉREZ, Carlota. “Revoluciones Tecnologicas y Capital Financiero”, México-DF; Editora Siglo Veinteuno Editores. 2004

[4] Nos últimos 20 anos, a Oracle comprou perto de uma centena de empresas de software altamente especializadas https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_acquisitions_by_Oracle

[5] O Grupo Linx adquiriu perto de 30 empresas de tecnologia entre 2008 e 2020 http://ri.linx.com.br/a-companhia/historico-de-aquisicoes/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/02/eua-expandem-investigacao-antitruste-sobre-grandes-empresas-de-tecnologia.shtml

[7] Estoque (matérias primas, intermediários e produtos acabados), planejamento, programação e controle da produção, chão de fábrica

[8] Originalmente, as grandes redes físicas de distribuição desenvolveram seus próprios sistemas. Ao longo do tempo, com a contínua incorporação de novas funções, o custo e o tempo de entrega das manutenções tornaram-se proibitivos. Hoje, com muito custo, elas adotaram soluções de terceiros.

[9] Os grandes ERPs (SAP, Oracle, Proteus) tem tido grandes dificuldades em incorporar as funções típicas do e-commerce em suas plataformas.

[10] Em 2018, a Amazon gastou 13% em tecnologia e 6% em marketing relativamente ao total das despesas operacionais https://ir.aboutamazon.com/static-files/0f9e36b1-7e1e-4b52-be17-145dc9d8b5ec

[11] Por exemplo: localização e destino do demandante do transporte individual e localização de motoristas disponíveis nas imediações.

[12] Um bom exemplo está explícito “Como apps de entrega estão levando pequenos restaurantes à falência” https://www.bbc.com/portuguese/geral-51272233

[13]

[14] Os departamentos de Moda, Automotivo, Livros, Utilidades Domésticas e Beleza-Perfumaria reúnem perto de 60% do total de vendedores de um grande marketplace, em sua grande maioria, constituídos por pequenos vendedores.

[15] Folha de São Paulo, 18 de fevereiro de 2020, página A18. O que está entre [] são esclarecimentos do autor deste texto assim como os grifos.

 
 

Compartilhe

Categorias

Artigos mais recentes

Tags