A emblemática crise do livro

A recente crise no mercado editorial é uma valiosa oportunidade de reflexão sobre a dinâmica das determinações impostas pelas características da mercadoria livro, considerando-se as mudanças técnicas atuantes em seu processo de produção e circulação. É importante ter em mente que a crise não se deve à retração da demanda (redução da base de leitores ou aumento do preço de venda devido ao custo de produção etc.). A crise tem origem interna à cadeia de valor do livro e se manifesta na comercialização – a inadimplência das duas livrarias líderes de mercado.

Este artigo, sob o olhar do e-commerce, visa contribuir para a discussão sobre a interação entre canais de venda e seus particulares modelos operacionais. Ele se ancora na mercadoria livro e no leitor, elementos fundantes da estrutura industrial, da estrutura comercial e de suas inter-relações em constante transformação. Para tanto, a sequência da narrativa pretende ir do geral ao particular: características do livro, produção, distribuição, leitores, expansão das redes de livrarias, impacto da mudança na tecnologia comercial, culminando com a venda de livros nos marketplaces.

Os dados sobre os marketplaces resultam da mineração da base cedida pela Precifica e os dados sobre o mercado foram obtidos do relatório SNEL-FIPE 2017.

Características do produto

A mercadoria livro tem características peculiares: marca sempre evidente (editora); identificação única centralmente controlada (ISBN[1], equivalente ao que chamamos SKU); especificação detalhada feita na origem (autor, resumo, quantidade de páginas, peso etc.); não possui prazo de validade; altíssima variedade e preço unitário relativamente baixo.

Produção do livro

Simplificadamente, o ciclo produtivo do livro envolve muitas atividades, entre as mais importantes: curadoria (seleção da obra), contratação com o autor; formatação, projeto da capa; plano de propaganda e de distribuição; revisão do texto; produção gráfica (terceirizada) e a comercialização. Assemelha-se à produção de vestuário[2]: a marca define tecido, cores, modelos, tamanhos e a confecção é terceirizada; ainda, em mais uma analogia, editoras podem ter livrarias, assim como marcas podem ter lojas próprias. Novas tecnologias aceleraram o processo de produção gráfica, reduzindo custos e o lote econômico, aumentando a variedade da oferta. O ciclo do capital desta indústria – tempo decorrido entre o início dos investimentos e o início da receita – é longo, girando em torno de um ano[3].

Para se ter uma ideia da produção anual desta indústria em 2017: foram editados 48.789 ISBN, destes, 32% lançamentos e o restante reimpressões; foram vendidos 139.523 ISBN[4] e produzidos 393.284.611 exemplares[5]. Pode-se ter a impressão que o volume produzido seja alto, no entanto ele corresponde a 13% da produção norte-americana, enquanto a população brasileira corresponde a 63% da norte-americana.

Sobre a produção dos e-book, comenta-se muito mais do que se deveria, basta citar os dados referentes à 2016: foram editados 9.433 ISBN, o acervo total era de 49.662 ISBN e seu o faturamento correspondia a 1,09% do total de livros.

Distribuição

Segundo a Unesco, o padrão ideal de livrarias por habitante seria uma para cada dez mil. No Brasil, com dados de 2013, havia uma livraria a cada 64 mil habitantes, ou seja, perto de 3095 livrarias mal distribuídas: três quartos delas situadas nas regiões sul e sudeste, e, como agravante, 73% dos 5570 municípios não têm sequer uma livraria[6].

Excetuando o Estado, a maioria das vendas das editoras são feitas diretamente para as livrarias (53%) e para distribuidoras (35%). Tais dados dão a entender que o perfil da demanda é de pedidos com muitos itens, cada um deles em grande quantidade.

Sumariamente, a precificação de livros físicos segue uma regra: a editora estabelece o teto de preço (preço de capa), vende para as distribuidoras com desconto de 50% e para as livrarias por 30%[7]. A grande maioria das vendas das editoras (80%) é feita em consignação, cujo prazo de pagamento varia entre 60 a 90 dias contados a partir da venda do comerciante.

Cabe a pergunta: qual seria a razão de regra comercial tão generosa para os livreiros? Esta regra decorre da extensa variedade dos livros: para atrair clientes, qualquer livraria é obrigada a manter amplo sortimento com vários exemplares. Considerando a incerteza da venda e o alto volume em estoque, caso o livreiro pagasse suas compras independentemente da venda aos leitores, seu capital e risco em mercadorias seria muito elevado, condição que reduziria a quantidade de pontos de venda. Isso, evidentemente, contraria a indústria por diminuir a exposição de suas ofertas. Adiantando conclusões, pode-se observar que tal argumento é fragilizado pela emersão do varejo eletrônico.

Com tais prazos de financiamento aos clientes, as editoras obrigam-se a ser muito capitalizadas e criteriosas na análise do crédito. Esta peculiaridade da indústria nos dá a medida do desastre caso haja inadimplência de parte significativa do varejo, principalmente no caso em que 40% das vendas de algumas editoras se destinam a duas livrarias (Cultura e Saraiva) – a concentração de mercado inibe políticas de crédito.

Ainda dentro do tema da distribuição, vale lembrar a existência de um mercado secundário (sebos) a concorrer e complementar as livrarias. Antes de difícil acesso, este mercado ganhou projeção a partir da centralização de suas ofertas por meio de marketplaces especializados.

Logística da rede de lojas

Tradicionalmente, as redes de livrarias distribuem o estoque pelas lojas, cujo sortimento é função do perfil dos clientes de cada uma delas. Supondo um nível de serviço adequado ao pronto atendimento da demanda, tal descentralização aumenta o estoque médio. Mesmo assim, toda loja convive com perdas de venda por rupturas de estoque, embora os livros faltantes possam estar disponíveis em outras unidades. Esta perda de receita forçou as redes a desenvolverem sistemas integrados de controle com objetivo de conhecer o estoque disponível de cada uma de suas unidades por ISBN, melhorando o atendimento aos clientes e aumentando a rotação de estoque. Este notável pioneirismo foi uma imposição da expansão dos pontos de venda, porém este tal controle auxilia sem resolver o problema do reabastecimento das lojas. Esta questão teria solução simples caso os clientes de todas as lojas tivessem o mesmo perfil de preferências ou que as mercadorias a serem oferecidas fossem restritas a um núcleo comum de consumo. No entanto, se a demanda for diferenciada por loja, perde-se a vantagem da consolidação da compra e, com ela, o desconto no preço de aquisição. Levando em conta a alta variedade dos livros, a expansão dos pontos de venda desconsiderando diferenças culturais, compromete o aumento do poder de compra, uma das razões de ser da formação da rede.

Logísticas das distribuidoras e lojas virtuais

Estes elos da cadeia de distribuição fazem uso de centros de distribuição para armazenarem livros. Neste caso, as características do livro permitem que a logística interna seja altamente produtiva: cadastramento facilitado pela boa especificação de fábrica; identificação externa e confiável[8]; dimensões que permitem grande adensamento de estoque; para lojas virtuais, o endereçamento pode ser aleatório; separação muito produtiva (cerca de 120 unidades por homem hora): facilidade de automação[9]; conferência da separação usa procedimentos similares ao recebimento e embalagem facilitada pelo formato e resistência do livro.

Caminhando em direção às inovações introduzidas pelo varejo eletrônico, recentemente, as redes de lojas centralizaram o recebimento das editoras. Isso implicou procedimentos muito específicos, por exemplo, cross-docking para reabastecimento das lojas e armazenagem para reposição sob demanda e atendimento dos pedidos da loja virtual.

Leitores

A expansão da base de leitores não depende apenas do preço do livro ou da facilidade de acesso à oferta deles. É preciso educar as pessoas a terem o hábito da leitura o que, em geral, é adquirido no processo educacional (políticas públicas), portanto fora do alcance dos livreiros. Isto posto, exceto no longo prazo, a demanda por livros é praticamente constante, assim a concorrência entre as livrarias limita-se à conquista de pontos de venda, preço, sortimento, atendimento ao cliente e ao ambiente de loja. Estes dois últimos fatores concorrenciais têm sido fundamentais: vendedores conhecedores de livros e capazes de dialogar com os leitores (personalização do cliente); ambiente acolhedor propiciando conforto ao cliente ao folhear os livros; instalações próprias para um ponto de encontro entre clientes e promoção de eventos culturais – há quem afirme que este trabalho das livrarias constitui o único instrumento que elas dispõem para fomentar o consumo de livros e que este seria o único formato adequado de uma livraria. Observa-se nesta visão uma tendência ao nicho, avessa à expansão, podendo ser complementada pela loja virtual.

Expansão das redes de livrarias

Tais singularidades comerciais, todas decorrentes das características do livro, determinam o ritmo da expansão de pontos de venda baseada em capital próprio –crescimento orgânico. Todavia, contando com empréstimos bancários, nos últimos anos as redes se expandiram com megalojas em vários estados1. Como a demanda é constante, a expansão substituiu várias livrarias por uma, acentuando a concentração de mercado. Para fazer frente ao aumento dos custos por m2, a diversificação da oferta foi a fórmula usada para aumentar a receita.2 Em suma, a rápida expansão alavancada, resultou na perda do foco no livro, descaracterizando o que, até então, conhecia-se como livraria – diversificação e variedade não rimam. É importante citar que esta desfiguração do modelo clássico de livrarias foi realizada justamente pelos livreiros muito bem-sucedidos operando no modelo que vieram a substituir, ou seja, não foi por ignorância.

Impacto da mudança na tecnologia comercial

O e-commerce mudou alguns dos fundamentos do comércio.

Atendo-se ao mercado de livros, seguem algumas das principais mudanças: perda da reserva territorial de mercado das lojas físicas; ampliação desmesurada do território de vendas; centralização do estoque – acesso ao acervo integral em tempo real; cotação de preço abrangente; redução da barreira de entrada – acesso de outsiders; fortalecimento do mercado secundário[12]; encurtamento da cadeia de distribuição, liberando distribuidoras e editoras para a venda direta ao consumidor; novos meios de comunicação com os consumidores[13]; conhecimento automatizado das preferências dos leitores; inclusão compulsória de novas competências (tecnologia e marketing digital) no mercado editorial; e-book, edição independente das editoras etc. É bom lembrar que o livro, por suas características, é tão especial que está na gênese do varejo não-presencial.

A primeira reação das livrarias a estas mudanças foi ampliar os canais de venda: a loja virtual própria. O notável legado da integração das lojas físicas não pode ser imediatamente aproveitado devido à radical diferença tecnológica entre sistemas de back-office e front-office, semelhante a uma crise geracional. Os profissionais responsáveis pelo sistema de integração de loja não puderam ser reaproveitados e, como costuma acontecer, reagiram negativamente à mudança.

As lojas virtuais da rede de livrarias passaram a enfrentar custos adicionais e alguma incerteza. Por exemplo, uma compra de dois livros de uma loja que não fizessem parte de seu estoque, poderiam implicar duas remessas não sincronizadas de lojas diferentes, portanto, penalizando o frete.

Todo o comércio tradicional teve que rever suas políticas de preço visto que a competição no e-commerce difere da competição no mundo físico. Com cotação disponível em tempo real, o preço passou a ser balizado pelo mundo virtual (altamente desregrado), embora a compra pudesse ser feita no mundo físico – canais com estrutura de custo distintas e praticando o mesmo preço de venda.

Paradoxalmente, uma virtude inerente a este mercado transformou-se em vício: ISBN, a rigorosa identificação do produto. Com uso de sites de pesquisa de preço ele permitiu a concorrência pelo produto e não por livraria[14], justamente o que vendedor algum deseja: a comparação abrangente de preço acessível ao leitor em qualquer tempo e lugar.

Venda de livros nos marketplaces

Os marketplaces provocaram modificações profundas no varejo não presencial, entre elas, o esmaecimento da marca e a selvageria da concorrência por SKU – há quem preveja que as lojas virtuais próprias sejam relegadas a um papel coadjuvante.

O consumidor, por meio do motor de pesquisa, é levado à página onde constam todas as ofertas da mercadoria escolhida. Pela inexistência de vendedor, a disputa pela preferência se restringe a poucos dados de cada ofertante: preço (com frete), reputação (seja lá o que for isso), prazo de entrega e regras de parcelamento de pagamento. Dado que a reputação não seja escandalosamente ruim, na maioria dos casos, a variável determinante é o preço. Este modelo comercial é perverso para os vendedores, ele promove a redução de preço[15] e, por conseguinte, fomenta a concentração de mercado. Para o consumidor, esta incitação à concorrência vem ao encontro de seu interesse[16]. Neste conflito, os marketplaces tomam partido dos consumidores a fim de aumentar a audiência.

Uma das formas usadas pelos vendedores para driblar a concorrência por SKU tem sido forçar a exclusividade de sua oferta por meio da individualização do SKU, embora, com isso, tenha que pagar o preço da obscuridade que ela sofrerá. Alguns exemplos elucidam este fato: para Moda, o percentual de ofertas exclusivas é de 99%, enquanto para Livros é de 45%, ou seja, 55% dos ISBN à venda têm mais de uma oferta simultânea. A principal razão desta disparidade é a impossibilidade de fuga do livreiro, visto que a identificação do livro é estabelecida pela agência reguladora e não por ele.

Há muitas razões para um vendedor baixar o preço a fim de aumentar a receita. A mais prudente delas é ter tido vantagens no preço de aquisição, condições especiais em função da quantidade comprada. Dessa forma, quem suporta a mais renhida das concorrências (todos os vendedores oferecendo a mesma mercadoria ao mesmo tempo), são as empresas que lideram o mercado. Os dados abaixo extraídos da marketplace da Americanas.com exemplificam o argumento:

Livraria SKU (1000) Ofertas Exc. Bye Box Ranking 2 Ranking 3 Demais
Saraiva 105 18% 62% 27% 10% 1%
Cultura 50 29% 38% 19% 17% 26%

 
1. As duas livrarias citadas concorrem em 54% dos ISBNs ofertados no marketplace

2. Somente em 18% das ofertas da Saraiva são exclusivas (buy box compulsório), para a Cultura, 29%.

3. 62% das ofertas da Saraiva ocupam a posição buy box, então, ela tem o menor preço em 44% de suas ofertas em concorrência. Para a Cultura, as ofertas buy box superam em 10 pontos percentuais as suas ofertas exclusivas.

4. A concentração de vendedores no departamento de Livros é, de longe, a mais acentuada. Um total de 1.088.868 ofertas foram feitas por 598 livrarias, 50% daquelas estão associadas a 1% das livrarias, 75% associadas a 3% e 90% a 5%. No varejo virtual, a concentração comercial é muito superior a do varejo físico.

5. A razão entre ofertas de um departamento e seus SKU é indicativa do seu nível de concorrência. Para Livros, esta relação é de 4 livrarias para 1 SKU, a mais alta entre todos os departamentos. Para melhor interpretar este número basta citar que para Eletroportáteis (indústria muito concentrada e distribuição bem dispersa), há 2,6 ofertas por SKU. Ainda, em Moda, onde quase não há barreira de entrada na indústria, há 1,2 ofertas por SKU.
 

Uma característica marcante do mercado editorial é a predominância do comércio sobre a produção, tornando-o extremamente sensível à concentração comercial conjugada com a intensificação da concorrência promovida pelos marketplaces. Há saídas para estas dificuldades, porém estas fogem ao escopo do artigo.

Finalizando, é oportuno registrar que se trata de um desastre anunciado a despeito do conhecimento e tradição de seus principais responsáveis. O sucesso da venda de livros pela internet era conhecido desde dos anos 90 (Amazon e a lenta agonia das tradicionais livrarias norte-americanas). As livrarias nacionais desconheceram a força do novo modelo e, ao invés de inovar no sentido de oferecer o que era ausente na venda não presencial, insistiram em estratégias de enfrentamento estranhas às características fundamentais do livro. O que as cegou?

Fernando Di Giorgi
Janeiro de 2019

 
 

[1] International Standard Book Number, cadastramento centralizado controlado pela Agência Nacional do ISBN da Fundação Nacional do Livro.

[2] Analogia que será frequente no texto.

[3] O ciclo do capital do livro é mais longo do que o vestuário (coleções em função das estações) e de brinquedos (vendas concentradas em duas datas festivas).

[4] A venda se refere tanto aos ISBNs editados no ano quanto aqueles editados em anos anteriores.

[5] Praticamente um terço dos exemplares produzidos são comprados por entidades governamentais (132.601.516).

[6] Panorama do Setor Cultural IBGE 2014, o que atesta a dificuldade em aumentar a base de leitores.

[7] Esta regra de precificação, também usada nos USA, está sendo acusada como um dos fatores da crise atual. A alternativa seria um desconto máximo de 10% sobre o preço de capa a vigorar até um ano da data de lançamento.

[8] São raros os WMS que reconhecem os livros pelo ISBN.

[9] A primeira automação da separação e designação de doca foi feita na Submarino em 2006 num investimento de 5 milhões de reais em moeda atual.

[10] A Saraiva, entre lojas e megalojas, conta atualmente com 70 unidades e a Cultura com, pelo menos, 13 megalojas nas principais capitais

[11] Na Americanas.com, a Saraiva, além de livros, tem ofertas nos departamentos de filmes e séries, papelaria, mala e mochilas, utilidades domésticas, móveis e decoração, telefones e celulares e brinquedos.

[12] A importância do mercado secundário ficou bem clara com a compra as Estante Virtual pela Cultura.

[13] Respondendo à crise na distribuição, muitas editoras abriram lojas virtuais.

[14] Fato que seria muito agravado pela concorrência nos marketplaces.

[15] Guiada por regras, a precificação passou a ser dinâmica baseada no contínuo monitoramento de preço dos concorrentes.

[16] Os marketplaces, em natural conluio com os consumidores, têm interesse em aglutinar SKU, mas não têm tido o sucesso esperado. Por exemplo, no mais competitivos dos marketplaces, somente 17% dos SKU têm mais de um ofertante.

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