Sistematização introduzida na atividade comercial pelo e-commerce

Para auxiliar a compreensão da sistematização introduzida na atividade comercial pelo comércio eletrônico é indispensável referenciar a tecnologia e metodologia de desenvolvimento de sistemas computacionais que o suportam e que o permite se expandir e se transformar. A primeira parte deste capítulo faz um breve histórico do desenvolvimento de sistemas integrados e suas limitações, em seguida, e de forma resumida ao foco dessa Dissertação, descreve a abordagem de desenvolvimento de sistemas baseada em processos, realçando as relações de produção inerentes num contexto empresarial. A segunda parte dedica-se a explicar o uso da plataforma técnica de gerenciamento e controle de processos para o comércio eletrônico e, por fim, o próprio funcionamento deste.

Historicamente os sistemas integrados empresariais (ERP) tinham por objetivo aglutinar, eliminar e dar precisão às funções administrativas, porém o encadeamento das atividades permanecia dependente do conhecimento dos usuários. Eles decidiam qual função deveria ser executada em cada situação, portanto eram cientes das relações de dependência entre os programas do sistema, ou seja, a sequência operacional era baseada em menu.

“Uma das transformações mais profundas que estamos vivendo nas organizações é a mudança do paradigma da estrutura orientada a processos e sistemas pré-estabelecidos, incluindo, principalmente, os ERPs – Enterprise Resources Planning, para estruturas orgânicas adaptativas a processos também orgânicos, seja porque novas demandas surgem do comércio eletrônico, da integração com agentes na cadeia de negócios que mudam seus processos, canais de distribuição que não são mais absolutamente fiéis, adaptando-se a novas realidades de mercados, imposições regulatórias instáveis, entre muitos outros fatores.” (Torres, 2011, p. 3, online).

Diante das novas exigências de integração, a nova arquitetura de construção de sistemas “propõe que todos os elementos de sistemas/aplicações sejam convertidos (quando possível) ou tratados como componentes autônomos (serviços), e que sua integração, para realizar processos, seja feita por tecnologias orientadas a processos. ” (Ibidem, ibidem, p. 16). Em outros termos, o encadeamento entre as atividades do processo passa a fazer parte do próprio sistema.

Quatro fatores básicos originaram o desenvolvimento do software de controle de processo envolvendo diferentes sistemas e plataformas.

O primeiro, deve-se ao avanço tecnológico, possibilitando o processamento em tempo real em larga escala, ao aumento da capacidade de armazenamento de dados; à internet, pela possibilidade de interconexão entre o controle centralizado e diferentes dispositivos (fixos e móveis) dotados de poderes computacionais e à padronização de protocolos de comunicação. De acordo com Norberto Torres:

“Vivemos, atualmente, a convergência de todas as tecnologias orientadas a processos e integração, que se unem para formar novas e revolucionárias plataformas de processamento, capazes de tornar a integração em larga escala e a automação de processos uma tarefa, antes praticamente impossível, relativamente simples, suportada por padrões e ferramentas poderosas, que mudam, completamente, a forma de se automatizarem as operações de negócios. ” (Ibidem, ibidem, p. 4).

O segundo deve-se à concorrência dentro da indústria de software com os clássicos objetivos de reduzir o custo de produção e aumentar sua produtividade tendo em vista a necessidade de reduzir a rigidez de seus produtos no afã de acompanhar a dinâmica das mudanças administrativas de seus clientes. Ainda de acordo com Torres:

“o ERP tradicional, um conjunto de programas compondo um todo estruturado, já não só não atende mais aos requisitos de uma operação integrada e completa, que transcende a operação da empresa, avançando sobre a cadeia de negócios, como, principalmente, limita essa operação, impondo processos muitas vezes anacrônicos, de difícil manutenção e adaptação a variações necessárias nos modelos de negócios.” (Ibidem, ibidem, p. 4).

Em outros termos, aumentar o grau de generalidade (no sentido de abstração) do software transferindo ao usuário o serviço de adequação do produto às suas necessidades.

O terceiro fator visa dispensar a presença dos trabalhadores que construíram a versão original na produção das versões subsequentes, ou seja, dissociar o sistema (produto) dos seus desenvolvedores originais pelo esforço na transformação do trabalho complexo em trabalho simples. Segundo Torres, nessa nova arquitetura os

“processos centrais de negócios podem ser desenhados de forma independente de qualquer solução de sistemas de mercado, e, a eles, podem ser associados componentes elementares, disponíveis no mercado ou construídos especialmente para demandas específicas, mas ainda assim como componentes autônomos. ” (Ibidem, ibidem, p. 17).

O quarto fator refere-se à necessidade empresarial de planejamento em termos de tempo, custo e recursos, considerando o valor orçado e a expectativa de entrega. Com esta necessidade a indústria de software se depara com a quantificação horas de trabalho de cada uma das atividades que compõe o sistema e da qualificação profissional correspondente. Embora complexo para um núcleo reduzido de analistas e projetistas, isso exige que o trabalho seja simples para os desenvolvedores. O trabalho intelectual destes profissionais, como atividade imaterial, é de mensuração imprecisa, porém, como toda atividade produtiva, ela deve ser planejada e controlada em termos operacionais e orçamentários. Esta aparente contradição tem sido contornada com a combinação de uma relação salarial com premiações quando do atingimento de objetivos preestabelecidas. Nos dizeres de Gorz,

“Todas as grandes firmas sabem, no entanto, no quadro de uma relação salarial, que é impossível obter de seus colaboradores um envolvimento total, uma identificação sem reservas a todas as suas tarefas. Pelo fato de ser contratual, a relação salarial reconhece a diferença e até mesmo a separação das partes contratantes, e de seus interesses respectivos. Ela possui um caráter emancipador por limitar os direitos dos empregadores, e as obrigações dos assalariados, à fronteira que há entre a esfera do trabalho e da vida pessoal, privada. Consequentemente, grandes firmas procuram transformar a relação assalariada em relação de associação, ao oferecer stock-options aos colaboradores que lhes são indispensáveis, ou seja, ao lhes oferecer uma participação no capital e nos diversos benefícios da firma. “ (GORZ, idem, p. 22).

Segundo a definição, anteriormente descrita, dada Carlota Pérez (1985, p. 23) a sistematização seria garantida pela plataforma tecnológica de comando de processo de trabalho e a automação estaria presente nos componentes elementares do processo (hierarquia de unidades de programação).

A inclusão de uma camada de software responsável pela “orquestração” das atividades do processo de trabalho na construção de sistemas deu origem aos sistemas integrados orientados por processo que, além de aprofundarem os ganhos anteriores, permitiram a livre programação da articulação das funções.

Esta mudança teve consequências produtivas e organizacionais importantes, entre elas a coordenação do trabalho nas fábricas e nos escritórios que passou a ser flexível, garantindo a efetividade do comando gerencial: o sistema convoca o usuário à realização da tarefa, com total controle sobre o tempo e qualidade do trabalho a ser por ele realizado. “Hoje, as fábricas, praticamente sem trabalhadores, conduzidas por programas de computador, são cada vez mais a regra, tanto em países altamente industrializados como naqueles em desenvolvimento”. (RIFKIN, idem, p. 150).

Com o uso do sistema, foi possível separar e centralizar o comando (definição do processo) das funções (objeto da programação realizada pelos profissionais de TI), projetadas para serem extremamente simples, não redundantes e profusamente reutilizáveis. Assim, o extremo fracionamento das unidades de programação e a potência do engenho que as articula para um determinado fim são determinantes nas indústrias de software, princípios muito semelhantes aos usados nas grandes unidades de produção originárias da segunda revolução industrial, a despeito do formidável desenvolvimento tecnológico usado. (DI GIORGI, 2014d, p. 16).

É aparentemente paradoxal que os avanços tecnológicos ressuscitem velhos conceitos do fordismo-taylorismo de definição e controle de processo (produção em massa, ênfase na produtividade, padronização e fracionamento das atividades e banalização do trabalho humano), para serem utilizados no controle dos fluxos administrativos em todos os setores.

Segundo o professor Benedito Rodrigues de Moraes Neto,

“o fordismo é um desenvolvimento da proposta de Taylor; nada mais é do que a utilização de elementos objetivos do processo, de trabalho morto, para objetivar o elemento subjetivo, o trabalho vivo … é o fordismo que leva o taylorismo a uma espécie de perfeição. O que faz o fordismo? Fixa o trabalhador em um determinado posto de trabalho, o objeto de trabalho é transportado sem a interveniência do trabalho vivo; este nunca perde tempo com o que Ford chama de “serviço do transporte”, e só faz, se possível, um único movimento”. (MORAES NETO, 1986, p. 32)

Numa analogia, a sistematização do trabalho representada pela plataforma de controle de processo de trabalho, seria a “esteira” ao controlar o “serviço de transporte” da informação enriquecida pelas funções automatizadas realizadas, ditando e controlando o ritmo do trabalho dos operadores necessários em funções ainda não passíveis de automação. Neste sentido, enquadra-se a indústria de software como uma indústria de bens de capital e seu modelo de organização da produção é similar ao modelo que o uso de seus produtos (sistemas de informação) impõe às organizações.

O modelo fordista-taylorista aplica-se também ao trabalho intelectual de construção de sistemas de grande porte – aqueles que não podem ser construídos de modo incremental – particularmente com o uso de metodologia de análise, projeto e programação orientada a objetos, sobre a qual há extensa literatura. A articulação virtual do fluxo operacional está sendo usada na “fábrica de software”, no desenvolvimento de aplicativos gerenciados por processo a partir da construção de componentes (módulos elementares de programação independentes entre si) sem que os desenvolvedores saibam exatamente como serão articulados, como fica claro no texto abaixo:
“Seguindo essas regras, programadores constroem códigos modulares que funcionam como pequenos programas individuais e independentes. Cada serviço recebe uma requisição, executa uma ação e retorna para quem o chamou. O uso de serviços oferece flexibilidade a programadores ao contar com uma biblioteca de serviços disponíveis e capacidade do mesmo serviço para reuso em outras aplicações conforme foi definido ou com modificações. Isso permite que os programas sejam construídos utilizando conceitos de serviços como se fossem peças prontas, reduzindo o tempo e o risco da programação”. (BPM CBOK, 2013, p. 390, online).

Esta independência do desenvolvedor de componentes em relação ao uso e significado de seu trabalho determina o vínculo do trabalhador com a empresa e com seus pares. No limite, ele pode ter contrato temporário para uma determinada tarefa, cuja execução independe do local onde seja realizada, desde que esteja conectado à empresa.

Outra característica importante deste método de trabalho é sua capacidade de expandir melhorar continuamente a funções preexistentes e eliminar as vulnerabilidades de segurança a um baixo custo. A melhoria de processos

“se baseia na necessidade de continuamente rever as operações em busca de solução a problemas, aumento da produtividade, racionalização e outros fatores que juntos permitem otimização. A melhoria de processos centra-se em melhorias incrementais de processo existentes normalmente focando tarefas específicas de maneira contínua nos diversos estágios do ciclo de vida dos processos”. (BPM CBOK, 2013, p. 416, online).

Um exemplo disso pode ser notado nas frequentes atualizações de aplicativos nos celulares. Esta possibilidade constitui uma das origens da vantagem do pioneirismo, explica a tendência à concentração do capital das empresas baseadas em tecnologia das empresas pioneiras.

O grau de felicidade na identificação e construção destes acréscimos é a fonte de remuneração extraordinária, constituindo-se num forte estímulo ao prolongamento da jornada de trabalho e à competição entre os desenvolvedores.[1]

Esta possibilidade de melhoria contínua aumenta o capital das empresas que desenvolvem seus próprios sistemas, ao mesmo tempo utilizando-os para a reprodução de seu capital, tal como vemos nas grandes lojas do comércio eletrônico.

Esta concepção de trabalho, usada na construção de sistemas computacionais, é consequência da perda de lucratividade dos desenvolvedores de aplicativos e a insatisfação dos clientes devido à rigidez dos sistemas até então comercializados, portanto, decorrente do inelutável objetivo da indústria em reduzir custos, reduzir prazos de liberação de novas versões, e ampliar funcionalidades a partir de generalizações, deixando a customização por conta do cliente, vencer a concorrência etc. Quanto mais genérica for a solução computacional, maior será a longevidade do produto, maior será a adaptabilidade do sistema às mudanças nas regras e modelos de negócio, menor será o custo da manutenção e o atendimento aos clientes.

A generalização da solução e a reutilização das partes (componentes independentes) poupa toda sorte de trabalho humano inclusive de seus próprios criadores, tal como ressalta Rifkin:

“Embora o algum trabalho humano seja necessário para fabricar robôs, criar novos aplicativos para gerenciar fluxos de produção, manter e atualizar programas e sistemas, inclusive este trabalho profissional e técnico está diminuindo à medida que a tecnologia da inteligência se torna cada vez mais capaz de se reprogramar. ” (RIFKIN, idem, p. 152).

A possibilidade de articular o sequenciamento do trabalho viabilizou novas formas de reprodução do capital nos serviços e no comércio, ameaçando as formas tradicionalmente praticadas e provocando fortes reações corporativas e tributárias, tais como: (i) o comércio eletrônico permitindo o controle do fluxo do pedido do cliente, desde a sua captura até a entrega, incluindo a devolução; (ii) os sistemas que controlam a demanda, oferta e tarifação, tais como os serviços de táxi, de hospedagem e viagens; (iii) a plataforma de vendas virtuais articulando e controlando o processo de venda de milhares de pequenos lojistas num único site; (iv) o atendimento automático por meio de unidade de resposta audível (URA)[2] diretamente conectada ao banco de dados etc. (DI GIORGI, 2013b. Online).

Gorz acentua a importância desta tecnologia:

“Mas a verdadeira novidade, “revolucionária”, está ainda em outro lugar: é que o conhecimento, separado de todo produto no qual esteve ou está incorporado, pode exercer em si mesmo, e por si, mesmo, uma ação produtiva na forma de programas de computador. Ele pode organizar e gerir as interações complexas entre um grande número de atores e de variáveis; pode conceber e conduzir as máquinas, as instalações e os sistemas de produção flexíveis; ou seja, desempenhar o papel de um capital fixo substituindo trabalho vivo, material ou imaterial, por trabalho acumulado. ”(GORZ, idem, p.37).

Esta antiga ideia, agora reformulada com o uso de recursos tecnológicos, está no centro dos “novos negócios” baseados na internet, onde o fundamento, em sua utilização ainda mais evoluída é se apoderar do controle integral do processo – “uma agregação de atividades e comportamentos executados por humanos ou máquinas para alcançar um ou mais resultados” (BPM COOK, ibidem, p. 35) – sem que necessariamente execute as atividades e muito menos seja proprietária da totalidade do capital nelas envolvido.

[1] www.microsoft.com/investor/reports/ar13/financial-review/notes/employee-stock-savings-plans/index.html, acessado em 15/12/2015.

[2] É um computador ao qual se agrega uma placa específica para realizar as tarefas de telefonia (tais como atender, discar, desligar, reconhecer dígitos, falar, etc.), e um software que controle este hardware de forma a atender a objetivos específicos. http://www.blogdocallcenter.com.br/ Acesso em 09/11/2015

 

Texto adaptado de minha dissertação de mestrado “Comércio Eletrônico, modificações estruturais e funcionais na esfera da circulação”, defendida em março de 2016 na PUC-SP (https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/18808).

 

Bibliografia

BPM CBOK, “Association of Business Process Management Profissional”. Versão 3.0, 1ª edição, www.abpmp-br.org. 2013. Acesso em 26/12/2015

GORZ, André. “O Imaterial. Conhecimento, Valor e Capital”. Tradução Celso Azzan Jr. São Paulo: Annablume, 2005.

MORAES NETO, Benedito Rodrigues. “Maquinaria, taylorismo e fordismo: a reinvenção da manufatura”. Revista de Administração de Empresas FGV: Rio de Janeiro 26(4) 31-34 outubro/dezembro. 1986

TORRES, Norberto A. “O Fim dos ERPs”, http://www.uni.com.br/unicomm11/wp-content/uploads/downloads/2011/05/O_Fim_dos_ERPs_BITS_2011_Norberto_A. Torres.pdf, acessado em 10/12/15. 2011

RIFKIN, Jeremy. “Sociedade com custo marginal Zero”. Tradução Mônica Rosemberg. São Paulo: M. Books do Brasil, 2016.

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