A centralização da oferta – bens de capital que se transformam em produto

Há ramos comerciais cujas lojas, especializadas numa mesma categoria e independentes entre si, concentram-se geograficamente para reduzir o custo da transação (ato de comprar) do consumidor com a finalidade de encurtar seu tempo de compra, aumentando a variedade da oferta. Este é o caso de ferragens, materiais de marcenaria, confecções, componentes eletrônicos, autopeças para motocicletas etc.

Num modelo parecido, os shoppings centers centralizam num único imóvel lojas independentes entre si e diferenciadas do ponto de vista da oferta. Noutros ramos, grandes lojas, estrategicamente dispersas, concentram em si uma vasta gama de artigos com a mesma finalidade como os hiper-supermercados. Há, ainda, ramos comerciais em que a oferta de mercadorias ou de serviços não é e não pode ser concentrada, como o de imóveis (estáticos e aleatoriamente distribuídos pela cidade); taxis que transitam quase todo tempo; serviços de hospedagem etc. Nestes últimos exemplos, o encontro da demanda com a oferta adequada é mais difícil, a ponto de, em alguns tipos de transação, exigirem intermediação, cujo custo se relaciona diretamente com o valor transacionado.

Este artigo tem três objetivos. O primeiro, ressaltar o potencial de uso das tecnologias usadas para atender as necessidades operacionais do comércio eletrônico. O segundo, mostrar que a inovação não se limita à tecnologia em si, ela também está presente nos particulares arranjos de ferramentas preexistentes e em largo uso. O terceiro, a subversão causada por tais arranjos no funcionamento de mercados tradicionais, confrontando privilégios, colidindo com normas tributárias etc.

Para isso, o artigo aborda  a centralização da oferta como força-motriz de negócios, a extensão do uso da plataforma de controle de fluxo de trabalho como peça central em negócios, antes confinada em sistemas de informação e, por fim, descreve dois serviços bem conhecidos e diferenciados que se utilizam desses princípios: marketplace e agenciamento de transporte de passageiros por automóvel – Uber (norte-americana.

1. Centralização do conhecimento da oferta e da demanda de serviços

Não é difícil perceber que a facilidade do encontro oferta-demanda está diretamente associada à centralização conhecimento simultâneo da identificação e localização de ambas. Com o uso de várias tecnologias preexistentes (quase todas oriundas do desenvolvimento do comércio eletrônico), tal centralização está se constituindo num empreendimento autônomo, cuja receita é parte do trabalho e uso do capital de terceiros, intermediando a negociação. Alguns outros exemplos além dos já citados ilustram o fato: a troca de informações entre corretores sobre imóveis disponíveis; aluguel de imóveis para curta estadia etc.

É imenso o potencial a ser explorado nestes “velhos negócios”, com novas tecnologias. Elas, autonomamente, têm se tornado capazes de controlar grande fatia de mercado de determinados tipos de serviço, exclusivamente, usando uma plataforma virtual de controle do processo de trabalho, do comando e avaliação do trabalho dos fornecedores associados a partir da junção da oferta com a demanda, a precificação e o pagamento do serviço prestado.

2. Plataforma de controle de processo de trabalho

A plataforma centralizada de controle de processo, contando com o cadastramento de prestadores e tomadores de serviços, é composta por uma rede de atividades (internas ou externas e devidamente sequenciadas) que replicam integralmente o fluxo real do trabalho, incluindo todas as suas excepcionalidades (os chamados fluxos alternativos).

Cada uma das atividades é dotada de lógicas próprias tais como condição de disparo, a condicionalidade de ações a serem realizadas de acordo com dados recebidos etc. O “processo produtivo” é movido por um engenho, permanentemente atento às ocorrências relevantes, que aciona as atividades a elas correspondentes, considerando as informações recebidas das atividades precedentes. Exemplos de uso desta plataforma: o controle do fluxo do pedido do cliente no comércio eletrônico, desde a sua captura até a entrega, incluindo a devolução; atendimento automático por meio de unidade de resposta audível (URA): atendimento de call center; controle de presidiários com tornozeleira eletrônica, rastreamento de carga, controle do trâmites de processos jurídicos etc.

Estas plataformas podem estar embutidas no próprio sistema, neste caso, com uso muito específico, de alto desempenho e mais estável, ou externas a ele, em geral, uma plataforma genérica desenvolvida pela indústria de software, altamente flexível, porém mais lenta.

Para seu uso, esta ferramenta de coordenação e controle requer um profundo conhecimento do negócio para que possa comandá-lo. Justamente esse tem sido o mérito de quem está revolucionando o funcionamento dos “velhos negócios”. Em geral, todas elas concentram o controle da oferta dos prestadores de serviço (motoristas, corretores, proprietário de imóveis para locação etc.), são receptoras da demanda dos tomadores de serviço e sua localização, em alguns casos, chegam a determinar a regra de tarifação (caso dos serviços de táxi).

3. Transporte de passageiros por automóvel

O encontro da demanda com a oferta

O conhecimento da oferta é obtido através de um aplicativo instalado no celular do motorista. Por georreferenciamento, é possível conhecer a localização de cada ofertante e o estado em que se encontra (livre, em serviço, indisponível). A demanda, também perfeitamente localizada através do celular, é conhecida pela solicitação do tomador de serviço.

O encontro da demanda com a oferta, no menor prazo possível, é resultado do processamento centralizado: ele associa ofertantes, em condições de atendimento e devidamente selecionados, ao local da demanda. Um deles é escolhido.

A ordem de serviço

Com a concordância do tomador, uma “ordem de serviço” é gerada correspondente ao prestador, tomador e destino, sob controle permanente da central de controle para a tarifação – neste caso, dependente da quilometragem e tempo. A ordem de serviço é encerrada (há vários eventos a encerrar uma ordem, o mais comum é a chegada ao destino) quando o pagamento é registrado no aplicativo usando dados cadastrais previamente informados.

A tarifação e a receita

Como todo o acompanhamento tem que ser feito em tempo real, a tarifação pode ser alterada imediatamente (tal como precificação no comércio eletrônico), facilidade que é usada para manter o tempo médio de espera constante – se a demanda sobe, o preço também sobe para que a demanda se ajuste à oferta mantendo o sistema equilibrado. A tarifação também poderá ser usada como instrumento de poder monopolista: barreira de entrada à concorrência com a prática temporária de subsídios ou exercício da vantagem do poder de mercado auferindo superlucros.

A receita da empresa é um percentual da corrida, dessa forma, ela cresce na dependência direta do tamanho da frota e da jornada de trabalho dos motoristas associados. A receita cresce com o uso do capital de terceiros.

O comportamento de mercado

Os fatores de sucesso neste mercado são: a qualidade do recrutamento (tipo de veículo, antecedentes do motorista e regras de atendimento), o tamanho da frota, a gestão da tarifa tanto para equilibrar o sistema como instrumento estratégico. Como é fácil notar, a expansão da frota é imperativa para o aumento do faturamento de todas as partes e para a redução do tempo de espera. Esta sina empresarial, inevitavelmente, organiza o mercado de forma oligopolista, assim, a tarifa deixa de ser determinada pelas forças de mercado.

Conflitos internos ao modelo

Como em todo negócio, há conflitos de interesses entre a empresa proprietária da plataforma e seus associados:  a redução de tempo de espera implica aumentar a frota, porém, o crescimento da frota diminui a renda média dos motoristas pelo excesso de oferta.

4. Marketplaces

O encontro da oferta com a demanda

A loja-âncora, cujo maior patrimônio é o tráfego, abre seu espaço comercial para que pequenos e médios lojistas exponham suas ofertas ao lado das ofertas dela. Devido à pouca visibilidade dos seus sites, os lojistas, isolados na Web, atraídos pela demanda potencial gerada pelo tráfego da loja-âncora, concentram-se no marketplace. Esta imensa variedade de ofertas de distintos proprietários é reunida e controlada por uma plataforma tecnológica que não passa de uma versão ampliada do comércio eletrônico tradicional, considerando que parte das atividades do processo (fulfillment, entrega e reversa) passa a ser externa à loja-âncora, porém, ainda sob seu controle. A plataforma de controle é informada de todas as ocorrências das atividades externas por interfaces (ainda não em tempo real) diretas com os lojistas associados.

O preço de venda e a receita do marketplace

Tratando-se de espaço comercial concorrencial, os preços das ofertas são determinados pelos próprios lojistas, inclusive o prazo de entrega e o valor do frete. A receita do marketplaces em troca de seu poderio mercadológico e serviços (prevenção de fraude, processamento do pagamento e despesas financeiras e primeiro atendimento aos consumidores) é um percentual sobre o valor da venda de seus associados.

Comportamento do mercado

Ao abrir espaço para a concorrência penetrar em seu espaço comercial, a loja-âncora tem muitas vantagens, constituindo-se num dos traços diferenciais mais marcantes do mercado de comércio eletrônico: o uso marginal de seu capital fixo imaterial  – a plataforma de software sem desgaste físico e contabilmente depreciado -; a redução do capital de giro (a mercadoria comercializada é de propriedade do lojista associado); a complementação da variedade de artigos impulsionando o aumento do tráfego; a melhoria da margem pelo abandono de categorias de baixa lucratividade deixando-as para os associados e a redução do custo marginal das vendas próprias pela maior utilização do capital fixo.

O sucesso do marketplaces passa pelo aumento da variedade da oferta e do tráfego. Embora, inter-relacionados, o primeiro fator envolve o aumento seletivo da quantidade de lojistas e o segundo, a despesa com propaganda.

A tendência de médio prazo deste mercado é a estagnação devido a estrutura do mercado do comércio eletrônico. Admitindo as seguintes hipóteses: há, pelo menos, de 20 a 30 mil lojas virtuais em funcionamento regular; 50 lojas são responsáveis por 80% do mercado e 3 domínios respondem por 50%; é de se esperar que todas as lojas com muita visitação se transformem em marketplaces; parte importante do 20%  restante do mercado (pequenas e médias lojas) não tem condições de cumprir as exigências mínimas para se associarem a um marketplace sem denegrirem a imagem da loja-âncora (atraso na entrega, descontrole de estoque, infraestrutura de software insuficiente, deficiências de gestão etc.); os marketplaces instalados têm sido incapazes de impor a exclusividade dos lojistas sem reduzir  o percentual de comissão e, finalmente, todas as pequenas e competentes lojas farão partes de vários marketplaces simultaneamente. Isto posto, após um impulso inicial significativo no início da operação, a receita dos marketplaces deverá se estacionar, tendendo a ser repartida proporcionalmente à participação das lojas-ancora no mercado global.

Conflitos internos ao modelo

Ao admitir a concorrência em seus próprios domínios, as lojas-âncora estimulam o desenvolvimento de lojas de nicho promovendo a concentração destes segmentos de mercado, portanto, fortalecendo as lojas médias mais competentes, gerando pressões para a redução da comissão cobrada.

A melhoria da margem média da loja-âncora ao se desfazer de categorias com baixa rotação de estoque, alta diversidade de artigos e com particularidades logísticas modifica seu portfólio, concentrando-se em categorias vantajosas somente em grande escala e, portanto, mais concorrenciais em todos os sentidos.

A loja-âncora obriga-se a investir ainda mais para aumentar o tráfego, não só como necessidade própria, mas para honrar as promessas contratuais com os lojistas sob pena de abandono e, se possível, aumentar o percentual de comissão.

Fernando Di Giorgi

Publicado na edição 30 da Revista E-commercebrasil em dezembro de 2015

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