A logística e o desafio da (des)intermediação comercial

A intermediação comercial exercida pelas grandes lojas do varejo eletrônico (marketplaces) altera elos da cadeia de distribuição de mercadorias. Ao mediar a venda de pequenos lojistas aumenta um elo, embora virtual, e, no sentido contrário, elimina o lojista ao facilitar a venda direta da indústria ao consumidor, gerando profundas modificações na logística interna e externa da comercialização de mercadorias. Este artigo tem a pretensão de contribuir para identificação de ameaças e oportunidades para os fornecedores de serviços logísticos.

Introdução

Utilizando a abordagem histórica que é, ao meu ver, a melhor maneira para entender as transformações em curso. Desta forma, o artigo começa pela externalização dos processos associados à distribuição de mercadorias nos anos 90, pelo aumento da variedade de mercadorias ofertadas pelas redes de varejo e pelo aumento da frequência do reabastecimento das lojas em rede. Tais fenômenos forçaram maiores investimentos na informatização dos processos dos operadores logísticos, aperfeiçoando os sistemas de gestão de armazém (WMS) e de gestão de transporte tanto para embarcadores (TMS) como para transportadoras.

No final dos anos 90, intensificou-se no Brasil o comércio eletrônico mudando os requisitos funcionais dos sistemas logísticos disponíveis e revolucionando o atendimento a clientes (SAC). A comercialização de eletrodomésticos pelo comércio eletrônico, iniciada em 2002, modificou a logística interna (capacidade e estrutura de armazenagem, equipamentos de movimentação e os sistemas de gestão) e a externa (transportes) devido ao perfil das mercadorias expedidas[1]. A venda de artigos de vestuário e calçados começa a ganhar vulto a partir de 2010, impondo novas funcionalidades à logística interna[2].

Com exceção da absorção de novas categorias, o período 2002 a 2013 caracterizou-se pelo aumento do desempenho operacional (principalmente WMS e SAC) a reboque do extraordinário crescimento do volume de transações e explosão da diversidade de mercadorias.

A partir de 2013, a venda de mercadorias de terceiros pelas grandes lojas do varejo eletrônico marca o início de grandes mudanças estratégicas nestas empresas num processo que ainda está longe de se estabilizar – basta citar que algumas até mudaram suas denominações (empresas digitais) outras estão radicalizando chegando a ponto de abandonar a venda de mercadorias próprias.

Operadores Logísticos – melhoria do sistema de gestão dos armazéns gerais

Tradicionalmente, a modalidade operacional usada pelos operadores logísticos foram os armazéns gerais, cuja finalidade é armazenar mercadorias de terceiros, com forte expansão nos anos 90, principalmente devido à abertura comercial. Seus depositantes têm sido: cooperativas agrícolas, para armazenar produção de pequenos produtores; indústria cujos produtos têm venda fortemente sazonal: importadores com mercadorias recém nacionalizadas; indústrias com eventuais excedentes de estoque etc. Como tais mercadorias são, em geral, de baixo giro, a receita dos operadores logísticos com estas operações centrava-se na armazenagem e, por decorrência, a principal preocupação era lotar o armazém. Com esta diretriz, os operadores, passaram a trabalhar com muitas categorias de mercadorias[3] ao mesmo tempo, forçando seus sistemas de gestão a serem mais flexíveis – diversificação e flexibilidade são inseparáveis.

Houve tentativas malsucedidas de uso de armazéns gerais para o e-commerce, muito embora esta alternativa operacional possa parecer interessante para a redução do capital de giro. Seu desuso deveu-se à complexidade da legislação[4], à dificuldade de reconciliação de dados entre depositante e depositário, às irregularidades no recebimento, à complementação de dados logísticos, às regras de precificação difíceis de serem controladas etc.

É importante ressaltar que os obstáculos apontados acima justificam parcialmente o atraso e a dificuldade da oferta dos serviços de fulfillment pelos marketplaces, assunto que será abordado ainda neste artigo.

Operadores Logísticos – filiais de depositantes

Uma forma de contorno da complexidade fiscal dos armazéns gerais foi a abertura de filial dos depositantes estabelecida nos depósitos dos operadores logísticos. Com isso, a movimentação de mercadorias passou a ser suportada apenas com notas fiscais do depositante. Esta modalidade atraiu empresas que preferiam terceirizar as operações logísticas por serem relativamente estranhas ao seu negócio. Este tem sido o caso de entidades financeiras (materiais de consumo e maquinetas de cartão de crédito), empresas de comunicação (celulares), redes de lojas físicas com diversidade relativamente baixa para reabastecer seus pontos de venda etc. Tendo em vista o porte dos depositantes, o volume das transações, o valor das mercadorias, as particularidades de segurança, o monitoramento do desempenho e as fortes exigências de auditoria, os contratos de serviços de armazenagem se caracterizam por negociações difíceis (alto custo comercial) e longa duração,. Esta opção comercial é exigente em termos de capital: o operador logístico deve possuir porte adequado ao tamanho de seus clientes e domínio do sistema de gestão de armazém a fim de enfrentar inevitáveis customizações.

Como veremos, filial dentro dos armazéns de operadores logísticos está sendo a solução para que os marketplaces possam realizar o fulfillment de seus vendedores.

Operadores logísticos – terceirização da logística das redes de lojas físicas

A partir dos anos 2000, praticamente todas as grandes redes de lojas optaram pela centralização de seus estoques para reabastecerem suas lojas (exceto legumes, frutas e verduras), algumas terceirizaram a logística interna.

Esta nova demanda de serviços de operação logística obrigou os operadores a investirem em tecnologia, ampliando as funcionalidades do WMS: (i) interfaces com ERPs – agendamento, pedidos recebido e atendido; (ii) controle de pátio; (iii) cumprimento de rígidas regras de recebimento; (iv) recebimento em grandes quantidades; (v) diferentes formas de controle de estoque (nº de série e validade); (vi) endereçamento automático; (vii) pedidos por loja com centenas de itens; (viii) agendamento do embarque por conjunto de lojas; (ix) inventário rotativo no stop etc.

Além da ampliação das características operacionais, foi necessário criar novos instrumentos gerenciais: (i) controle da produtividade do trabalho; (ii) densidade de estoque; (iii) identificação dos gargalos; (iv) alertas sobre anormalidade baseadas em tempos padrões etc. Como as perdas de inventário eram de responsabilidade do prestador de serviço, a acuracidade de estoque passou a ser crucial.

Com esta experiência, a logística interna entra em sua maturidade, passando a ser tratada como um processo industrial fazendo uso da rica tradição da administração da produção.

Comércio Eletrônico

O WMS ganha nova vida com o comércio eletrônico.

A maioria dos sistemas de gestão de armazém usados pelas grandes lojas físicas não conseguiram se adaptar à granularidade do comércio eletrônico. Eles, ao reabastecerem lojas, eram voltados para grandes volumes, poucos e volumosos pedidos diários, recebimento muito normatizados, movimentação predominantemente por paletes etc.

As características da logística interna foram severamente alteradas, entre elas: (i) aumento da diversidade, de duas dezenas de milhar para centenas; (ii) volume de pedidos – de um por loja para um por consumidor; (iii) redução radical da quantidade de itens por pedidos – de centenas por pedido para 1,6 itens em média; (iv) redução do tempo de separação – entrega no mesmo dia; (v) novos métodos de recebimento – de paletes para pequenos lotes muito diversificados; (vi) endereçamento automático combinado com mistura de itens nas posições de estoque; (vii) transferências internas de estoque segundo giro de estoque do item; (viii) programação da separação por tipo de entrega; (ix) métodos de separação alternativos para ganho de performance; (x) nível de acuracidade de estoque – estoque lógico rigorosamente igual ao físico sob pena de perda de reputação; (xi) extensão das linhas de checkouts – conferência, embalagem e faturamento, inclusão de cartão de felicitações, indicação do presenteado; (xii) formação de carga por transportadora etc.

Como um processo industrial, o controle da capacidade produtiva da logística interna passou a ser vital para determinação do prazo de entrega dos pedidos de venda.

Nesta etapa, o WMS vive seu ápice.

Em 2002, o aumento do volume de vendas das grandes lojas impõe a necessidade de um sistema de controle da logística externa (TMS, gestão de transporte para o embarcador acoplado ao SAC e ao WMS) com os seguintes objetivos: escolher a transportadora; calcular o frete a ser pago pelo cliente; rastrear as entregas; processar e validar os CTe’s; interpretar e executar tarefas correspondentes às ocorrências durante o transporte e validar fatura de frete. Completa-se o ciclo de controle do atendimento físico do pedido de venda.

Integração loja física- virtual

Dois grandes objetivos têm sido perseguidos pelo comércio eletrônico há anos: a integração com lojas físicas e a redução do frete, notadamente o primeiro.

Vários tipos de integração foram implementados ao longo do tempo: (i) criação de quiosques de venda em lojas-mostruário ou em lojas comuns, esta como alternativa de completar a venda com o uso da loja virtual – do ponto de vista logístico esta integração pouco muda, exceto a redução da área e do capital de giro da loja física[5]; (ii) entrega da mercadoria numa loja física convocando o consumidor a retirá-la – neste caso, a redução do custo logístico somente seria significativa se a quantidade de entregas nas lojas fosse muito grande[6]; (iii) em conjunção ou não com a anterior, a possibilidade de a devolução da compra na loja virtual ser feita em alguma das lojas físicas – o impacto logístico seria a economia do frete da reversa ao deixar de fazer a última perna do percurso; (iv) unificação do estoque disponível às lojas física e virtual, com integração PDV-back-office[7] – solução real e há muito usada pelas grandes livrarias.

As opções de entrega e da devolução na loja têm o benefício da presença do consumidor na loja, condição ótima para uma venda adicional, porém elas somente são viáveis para grandes cadeias de lojas. Além disso, para que funcionem, há necessidade do controle e apontamento da transferência da mercadoria cliente-loja, prevenindo erros e fraudes, do rastreamento e da integração do sistema de frente de loja com o back-office pelo fato da venda ter sido feita pela loja virtual.

Independentemente da existência de rede de lojas físicas, desde que incentivadas, há alternativas para redução efetiva dos custos de frete evitando a entrega em domicílio e devolução a partir do domicílio. Trata-se do uso de redes muito mais abrangentes e não concorrentes com o comércio eletrônico, tais como distribuidoras de combustíveis ou agências dos Correios, solução implementada com sucesso em outros países.

Full e-commerce: indústria

A terceirização completa do processo de venda virtual está em operação no Brasil desde meados de 2012. A demanda por este serviços tem sido constituída por vários tipos de empresas e interesses, notadamente indústria ou indústria e comércio, entre eles: (i) adquirir conhecimento comercial do canal para balizar decisões futuras; (ii) diversificar o canal de vendas, considerando a inexistência de conflito entre os canais (redes de lojas próprias de vestuário); (iii) ampliar a venda mercadorias com demanda reduzida e dispersa de fabricação própria (cervejas importadas, suplementos alimentares sob prescrição); (iv)  venda direta ao consumidor de mercadorias fabricadas por grandes marcas imunes à pressão dos distribuidores (celulares, artigos de luxo) etc.

Não é trivial terceirizar as operações de e-commerce, além da tomadora de serviços abrir filial no depósito da prestadora, é necessário implementar várias interfaces entre seu ERP com o sistema de controle da prestadora[8].

Considerando o porte de seus potenciais clientes e o baixo volume de transações de cada um deles, este tipo de serviço se caracteriza mais pelo atendimento de especificidades de cada operação do que pelo desempenho. Isso tem evidentes reflexos no custo operacional, agravado pelo fato de muitos dos prestadores deste serviço não serem proprietários da totalidade dos sistemas que utilizam.

Marketplace sem fulfillment

Do ponto de vista da loja-âncora[9], a venda de mercadorias pelo grande varejo eletrônico, combinando mercadorias próprias e de terceiros, teve como objetivos: aumentar o tráfego pela expansão da variedade da oferta; reduzir o nível médio de estoque pelo abandono de categorias pouco rentáveis; reduzir custos logísticos pela liberação de área de armazenagem, mão de obra e equipamentos; aumentar a margem média pela melhor seleção da oferta e, por meio do aumento do volume de transações, reduzir o custo unitário de operações terceirizadas.

Com a gradual redução da oferta de mercadorias próprias, a estrutura logística interna das lojas-âncora teve que ser enxugada, implicando o fechamento de depósitos, a subutilização dos recursos do WMS e equipamentos de movimentação. Na logística externa, a descentralização da coleta na venda e da entrega na reversa aumentaram o custo médio do frete em geral, visto que parte das vendas que seriam das grandes lojas passou a ser feita por centenas de lojistas. Ociosidade e aumento de custos geram perda de eficiência de mercado.

Indo noutra direção, o surgimento dos marketplaces abriu novos mercados: (i) a descentralização da coleta aumentou a demanda de pequenas transportadoras; (ii) a transferência de parte das vendas das lojas-âncora, aumentando o volume de vendas dos lojistas associados, criou demanda para desenvolvedores de WMS de escopo restrito e (iii) a possibilidade de um vendedor operar por meio do marketplace, sem que tenha loja virtual, abriu a possibilidade da venda direta da indústria ao consumidor, criando demanda para o mercado de software complementares ao ERP de pequena abrangência (WMS, TMS e SAC).

Marketplace com fulfillment

Atendendo a demanda de muitos de seus associados, principalmente aqueles puramente virtuais, vários marketplaces estão se preparando para oferecer fulfillment, além de disputar o mercado de indústrias ou comércio que não desejam operar o canal de vendas virtual. Eles deverão enfrentar as mesmas dificuldades operacionais, já discutidas do full e-commerce, porém algumas vantagens importantes: (i) os prospects preferenciais serão os próprios associados; (ii) mais especiais ainda serão seus associados, puramente virtuais, que operam integralmente com sistemas do próprio marketplace, dispensando completamente as interfaces[10]; (iii) alguns marketplaces cujas lojas-âncora possuem larga experiência operacional, serão mais competitivos devido à redução de seus custos marginais; (iv) pelo aumento natural da demanda de carga, os marketplaces que possuem transportadora própria terão ainda mais vantagens. Este novo modelo operacional restaura a importância da logística interna e aumenta a eficiência da logística externa.

Em contrapartida, há dificuldades a serem enfrentadas para a terceirização em massa e integral das operações: (i) o WMS deverá operar com mercadorias de múltiplos proprietários simultaneamente[11]; (ii) o SAC deverá ser passível de parametrizações caso seja necessário diferenciar as políticas de atendimento; (iii) é pouco provável que os back-offices se ocupem com as operações  contábeis, fiscais e auditoria (por ex. reconciliação bancária e da fatura de frete); (iv) a busca pelo aumento da produtividade deverá implicar modificações nos sistemas existentes  – um exemplo: as ondas de separação deverão ser independentes dos proprietários, assim como os checkouts, implicando a geração da NFe segundo o pedido etc.

“Uberização” do transporte de carga leve

Todos se queixam do valor do frete cobrado pelas transportadoras e poucos estudam suas estruturas de custo. A entrega em domicílio, característica do comércio eletrônico, fracionou a entrega ao limite máximo – cada pedido de venda corresponde a uma ou mais entregas -, portanto na contramão dos ganhos de escala. Algumas alternativas, no sentido de concentrar a entrega, já foram expostas neste texto, porém, ainda com pouco êxito.

Recentemente, o mercado de transporte de carga leve, sobretudo urbana, aumentou a sua oferta com a inclusão de “uberistas” de carga, ainda restrito às encomendas pessoais. Porém, gradualmente, está se estendendo ao comércio eletrônico: a coleta é feita por um “uberista” com maior capacidade de carga[12]; a partir do conhecimento das entregas e antes de chegaram ao hub, as entregas são roteirizadas; ao chegarem ao hub, são agregadas por rotas e, por fim, com “uberistas” pré-escolhidos a postos, é feito o embarque das mercadorias. Algumas transportadoras já têm manifestado interesse em usar este processo.

 

Fernando Di Giorgi

janeiro de 2017

 

 

[1] Início da expedição e transporte de carga pesada.

[2] Ampliação do sortimento, romaneios complementando notas fiscais, dificuldade de conferência, ampliação das posições de estoque, aumento das devoluções, armazenamento aleatório por família etc.

[3] Produtos químicos, bebidas, ativos imobilizados defeituosos, equipamentos eletrônicos, livros didáticos etc.

[4] Ente outras complexidades, o controle de estoque é feito por item da nota fiscal de remessa para armazenagem de cada depositante, a baixa é feita pelo FIFO, respeitando os valores das notas originais.

[5] Caso a loja esteja num Shopping Center, esta modalidade de venda deveria ser incluída na base de cálculo comissionar o Shopping?

[6] Esta modalidade seria direcionada somente a consumidores residentes em casas e ausentes no horário comercial? Se não, qual tem sido o incentivo para o consumidor abrir mão do conforto da entrega em domicílio?

[7] Mesmo assim, há possibilidade de erro quando a mercadoria está nas mãos do cliente da loja física antes do faturamento ou esteja inacessível por erro de armazenagem.

[8]Basta pensar no recebimento e suas irregularidades, no cancelamento de pedido e estorno de pagamento, na importação da NF para apoiar o SAC, nas devoluções e crédito ao cliente etc.

[9] Loja-âncora neste texto é a loja proprietária da plataforma do marketplace concorrendo com seus vendedores associados.

[10] Disso advém a importância do ecossistema, dando total sentido às aquisições que foram feitas nos últimos anos.

[11] Caso as mercadorias não sejam segregadas por proprietário (há perda de espaço na segregação), há problemas em caso de falta-sobra de inventário e avaria.

[12] Para reduzir o fluxo de veículo no depósito do embarcador.

 

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