Diferenciais do e-commerce: enfoque microeconômico

Este artigo aborda alguns temas mais estruturais e polêmicos do e-commerce sob o enfoque microeconômico. O objetivo é incluir nos debates assuntos pouco abordados nos fóruns, visto que a prioridade discursiva tem sido orientada para vendas, propaganda, logística e desenvolvimento de novas funcionalidades no diálogo site-consumidor.

Alguns temas clássicos presentes na troca de mercadorias intermediadas pelo dinheiro são revisados neste texto à luz das modificações introduzidas pela tecnologia da informação. Destacam-se: a rigidez de preço do frete, a externalidade negativa da entrega em domicílio, a valorização da empresa com foco no faturamento, as preferências do consumidor e o modelo competitivo decorrente das características do mercado e da escolha dos competidores.

A rigidez do frete

Os custos de frete são rígidos tanto pela sua composição de custos como pela duração dos contratos. Os ganhos de escala no transporte somente são possíveis pelo alongamento do trajeto, maximização da carga em função da capacidade, minimização do parcelamento de entregas, boas condições da infraestrutura viária e retorno, quando possível, com carga[1]. Todas as condições descritas conspiram contra o e-commerce:  pulverização das entregas, trajetos urbanos em horário útil, limitação da capacidade do veículo determinada por leis municipais etc. Para piorar, o que por si já é caro, torna-se ainda mais gravoso pela prática do frete grátis como decorrência da competição com as lojas físicas. O frete e sua natural rigidez está na essência do comércio eletrônico, portanto não deveria ser considerado como responsável pela perda de competitividade do e-commerce frente aos outros canais de venda.

Externalidade resultante da entrega em domicílio[2]

Há uma externalidade negativa (custo social) gerada pelo e-commerce apontada pelos ambientalistas. Trata-se de uma decorrência da entrega em domicílio a aumentar o tráfego urbano e a poluição. Vamos as argumentações: (i) o consumidor, ao comprar no varejo físico, otimiza a equação que envolve o conflito entre o benefício de comprar em lotes menores e a soma do custo do deslocamento e o custo de oportunidade do tempo gasto no trajeto. Com tal racionalidade, cai o número de transações, portanto, menor será o tráfego pelas vias públicas; (ii) ao comprar pelo e-commerce, o consumidor admite que o frete a pagar seja inferior ao benefício que ele terá em usar seu tempo em outra atividade adicionado ao custo que teria no transporte. Portanto, este tipo de consumidor realizará um volume maior de transações usando o e-commerce do que faria sem ele; (iii) as frequentes ofertas bem direcionadas ao perfil do consumidor estimulam-no a aumentar o volume de transações; (iv) no Brasil, o frete da devolução, dentro do período e motivos regulamentares, corre por conta da loja, portanto, arrepender-se nada custa ao cliente, mas não é o caso para o tráfego e para a loja; (v) com o frete grátis, não há o que discutir. O benefício gerado ao consumidor tem um custo social não totalmente coberto pelo frete a pagar.

A valorização da empresa pelo volume faturado

Pelos informes dos jornais e balanços publicados, as grandes lojas do varejo eletrônico brasileiro não estão remunerando o capital investido, ao contrário, estão recebendo seguidos aportes[3]. Esta situação paradoxal tem sido explicada por meio de uma mudança na forma de avaliar as empresas: a valorização estaria diretamente ligada ao nível de faturamento e à liderança de mercado, projetando altos lucros no futuro. Eis algumas crenças que substanciam esta forma de pensar: (i) o e-commerce é irreversível e deverá tomar parte significativa do varejo físico, portanto sua tendência é de crescimento contínuo; (ii) é indispensável acompanhar as mudanças introduzidas pela tecnologia sem as quais haverá queda de competitividade; (iii) a tecnologia aplicada ao comércio é um ativo cujo desenvolvimento é cumulativo, portanto, um bem que não está disponível no mercado; (iv) até o momento as previsões sobre como será o novo modelo de comercialização são muito incertas, justificando o experimentalismo e o seguimento de fórmulas vencedoras da concorrência[4]; (v) há sinais de rápida transformação no setor de serviços[5] a mostrar que o potencial de uso da tecnologia da informação está longe se ser esgotado. Tais incertezas subvertem as fórmulas clássicas de avalição de empresas, abrem caminho para a especulação e perda de critérios de avaliação de desempenho.

A captura das preferências do consumidor

A decisão do que produzir sempre foi muito incerta, pois ela é feita sem que se tenha conhecimento das preferências do consumidor (parte de sua subjetividade). Mesmo nos mercados de bens de consumo regular (alimentos básicos, por exemplo) a incerteza está presente devido à possibilidade de a oferta superar a demanda. A mercadoria não vendida é um capital que não se realiza, ficando retida no produtor ou no depósito do comerciante. Esta questão é central na teoria econômica marginalista do consumidor ao considerar como ponto de partida a maximização das preferências sujeitas às restrições orçamentárias. Uma das formas teoricamente propostas para conhecer as preferências do consumidor é registrar suas escolhas de consumo.

Há vários recursos para evitar estoque invendáveis.

Um deles é a inversão dos papéis: através da propaganda, a indústria induz o consumidor a comprar o que ela deseja produzir. Outro, bem mais difícil, é a sintonia fina entre a produção e o consumo por meio da redução do ciclo e do lote econômico de produção, minimizando o tempo de reabastecimento do comerciante.

Dois casos bem diferenciados ilustram o segundo recurso: (i) itens de produção em massa e integralmente automatizada, intensivos em tecnologia embarcada e alto valor unitário, com cadeia produtiva relativamente curta, cuja planta industrial pode ser rapidamente instalada, por exemplo celulares; (ii) itens sazonais, intensivos em mão de obra, com cadeia produtiva relativamente longa, preço unitário mediano, ampla variedade de modelos e, cada um deles, diferenciados por tamanho e cor, como por exemplo, o vestuário[6].

O segundo exemplo parece contraditório, visto que, tradicionalmente, as peças a serem vendidas no verão são produzidas no inverno e vice-versa, razão pela qual há perda de vendas nos itens preferidos pelos consumidores e excedente de estoque nas peças que forem preteridas. A eliminação deste crônico problema tem envolvido: a redução de componentes no projeto dos modelos (tecidos e aviamentos)[7], diminuição do grau de dificuldade do processo de produção[8], estocagem dos tecidos crus, redução do lote econômico do tingimento[9], plantas industriais próximas aos locais de consumo[10], comunicação em tempo real entre o consumo e o planejamento da produção, restrição e rotação dos modelos entre os pontos de venda comunicando a sensação de contínua novidade.

O desenvolvimento tecnológico, impulsionado pela competição, tem continuamente reduzido o ciclo de produção, abrindo espaço para a diversificação de mercadorias. Deste modo, rompe-se a linha divisória entre o comércio e a indústria e, por outro lado, dá condições para a redução do capital mercantil por meio do encurtamento do prazo de reposição. As grandes redes produzindo “da mão para a boca”, tornaram-se também produtoras. Porém, nada impede que um industrial tenha o mesmo nível de integração com o e-commerce, afinal, tecnologia para isso é o que não falta.

A competição por preço

Algumas inovações introduzidas pelo comércio eletrônico transformaram o modelo competitivo no varejo. Seguem algumas das principais mudanças: (i) as funções de comprador e vendedor foram fundidas numa só pessoa[11] (ii) há grande facilidade em alterar os preços de venda[12]; (iii) o comprador-vendedor está perfeitamente informado sobre os preços da concorrência; (iv) o comprador-vendedor conta com amplo instrumental para a tomada de decisão frente às ofertas da concorrência[13];(v) consumidor está plenamente informado sobre preços de mercado via buscadores de preço; (vi) todas as lojas competidoras têm a mesma abrangência de mercado; (vii) as grandes lojas competidoras tendem ser indistinguíveis quanto à qualidade dos serviços essenciais (pontualidade, tempo de entrega, atendimento pós-venda), escasseando as possibilidades de diferenciação pela marca.

Tais condições de competição, aliadas à maximização do faturamento como objetivo primordial, conduz à queda da margem média de mercado[14]. Em outros termos, a gradual perda da reserva territorial de mercado das lojas físicas reduz o lucro médio global do comércio. Neste novo cenário concorrencial é clássico inferir: (i) intensificação da concentração visando a massa de lucro; (ii) contínuos investimentos para minimizar custos (reduzir postos de trabalho na logística interna e no atendimento pós-venda); (iii) combinar a atividade varejista com a prestação de serviços visando transferir parte do risco comercial a terceiros[15]; (iv) investir compulsoriamente em publicidade visando manter o nível de visitação; (v) investir crescentemente em tecnologia[16].

Concluindo, são recentes os efeitos da tecnologia da informação aplicada aos serviços, principalmente devido às possibilidades abertas pelo processamento em tempo real e em larga escala, pelo aumento da capacidade de armazenamento de dados, pela interconexão (via internet) entre o controle centralizado e diferentes dispositivos (fixos e móveis) dotados de poderes computacionais e pela padronização de protocolos de comunicação. Isto tudo viabilizou a produção de sistemas integrados orientados por processo.

Com tais instrumentos, foram produzidos sistemas mais flexíveis e capazes de coordenar fluxos de trabalho intensivos em decisão (regras embutidas nos sistemas substituindo a intervenção humana de modo gradual e adaptativo), garantindo a efetividade do comando gerencial e, ao mesmo tempo, mantendo rígida padronização operacional. Um exemplo claro da profundidade da mudança é o Uber[17] pelo seu devastador efeito no mercado de transporte individual, jogando taxistas contra usuários e exigindo nova regulamentação.

Finalmente, considerando que a inovação de hoje será o suporte para a de amanhã e que certamente produzirá profundas transformações nos mercados até então estáveis, a angústia dos investidores tende a ser menor, pois o investimento tecnológico se impõe como necessidade.

Fernando Di Giorgi

https://www.ecommercebrasil.com.br/artigos/diferenciais-do-e-commerce-enfoque-microeconomico/ em 04 de janeiro de 2017

[1] Este sempre foi o sonho das redes de supermercados: os caminhões voltarem carregados de mercadorias dos fornecedores opôs terem descarrega do reabastecimento das lojas.

[2] Externalidade: um custo ou um benefício imposto sobre um agente a partir de ações tomadas por outros agentes. O custo ou benefício é gerado externamente àquele agente.

[3] Vide Valor Econômico, 24/09/2016, pag. B5

[4] Para exemplificar, basta notar a necessária diversificação dos canais de venda da Natura em seus esforços em recuperar mercado: além da tradicional venda porta-a-porta (desde 1969 e agora com mais recursos tecnológicos), passou a investir no e-commerce (Rede Natura), em lojas físicas e incentivar statups.

[5] Marketplace no varejo, Uber no transporte privado por automóvel, Airbnb no setor hoteleiro

[6] Ver artigo de Suzanne Kapner, Valor Econômico, 30/09/16.

[7] Para se ter uma ideia da árvore de produto de uma jaqueta de inverno, basta informar que o número de componentes chega a ser maior do que 50.

[8] Aumento da produtividade e do rendimento, com uso de mão de obra menos qualificada.

[9] A redução do porte da máquina de tingimento e a redução se seu tempo de setup tem sido um dos fatores determinantes.

[10] Majoritariamente, em países com mão de obra farta, baixo nível de seguridade social e acordos de isenção tributária.

[11] Tal fusão facilita a atribuição de responsabilidades e avaliação de desempenho. Nas grandes lojas do varejo físico, quem compra não vende e que vende não compra, além disso, quem compra abastece o centro de distribuição, não necessariamente a loja.

[12] Os custos envolvidos na mudança de preço são denominados custos de menu, tradicionalmente associados às etiquetas sejam elas postas em cada unidade ou nas gôndolas.

[13] Preço da última compra, posição de estoque, venda média do item, prazo de reposição, rotação de estoque, conhecimento de margem da categoria praticada até o momento em comparação com a meta estabelecida pela empresa etc.

[14] Um exemplo da “guerra de preço no e-commerce “A Comissão Europeia divulgou, em um relatório preliminar, que 48% dos varejistas on-line têm restrições de fabricantes sobre o preço que podem cobrar em diferentes países europeus” Valor econômico 16/09/16.

[15] Por exemplo, a partir do marketplace e aluguel da plataforma de tecnologia incluindo site e back-office.

[16] Principalmente por aquisições – é mais econômico comprar o que deu certo do quem bancar e gerenciar centenas de projetos de alto risco – a fim de se apropriar do conhecimento fechando o mercado aos concorrentes

[17] É importante ressaltar que a plataforma do Uber resulta da feliz combinação de componentes desenvolvidos ao longo da história do e-commerce e do georreferenciamento.

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