Comércio eletrônico: capital, despesas e lucratividade

O ambiente econômico recessivo, os aportes anuais de capital para reforçar o caixa, as correções no balanço devido a desvios de mercadorias, as demissões em massa, a ênfase das grandes lojas virtuais no marketplace a sinalizar o desconforto com riscos comerciais, as frequentes tentativas de diversificação de negócios das gigantes do e-commerce mundial (lojas físicas, entretenimento, imprensa, transporte etc.), remete-nos à reflexão sobre as essencialidades do comércio eletrônico, um convite a rever  estratégias e processos sob o enfoque do que é estruturante, permanente, não circunstancial.

“Na crise, atenha-se aos fundamentos” é um provérbio tradicional que sintetiza o objetivo deste artigo. Com isso em mente, penso ser interessante discorrer sobre comércio eletrônico focando sua estrutura e composição do capital, principais despesas, algumas alternativas usadas para melhorar seu desempenho e lucratividade. Como forma de caracterizar o canal, o artigo faz uso das diferenças entre os canais de venda.

Estrutura e composição do capital

Embora a estrutura do capital do comércio eletrônico seja similar ao do varejo físico, ele difere muito em sua composição.

Quanto ao capital fixo, a principal diferenciação reside na logística interna, na plataforma de administração da loja e no desenvolvimento tecnológico. Quanto à logística interna: os centros de distribuição se ampliaram[1] e se multiplicaram; a gestão de armazém, incluindo automação da separação, tornou-se muito complexa[2]. Quanto à gestão da loja, a economia com a eliminação dos pontos de venda foi substituída pelo custo da manutenção da plataforma de atendimento administrativo dos pedidos de venda[3], constituindo-se num ativo crucial e de maior valor do comércio eletrônico. Quanto ao desenvolvimento[4], as grandes lojas são forçadas a gastos vultosos, pois são reféns das inovações tanto da própria tecnologia da informação em seu sentido geral (hardware e software), como das inesgotáveis possibilidades de seu uso nos negócios[5].

Quanto ao capital circulante, a diferenciação é acentuada e em fase de acomodação. O varejo físico impõe limites naturais à expansão de itens ofertados pela limitação dos espaços de exposição e armazenagem no ponto de venda, assim, são obrigados a restringir a diversidade, selecionando os artigos em função de sua rotação. O varejo eletrônico, tendo em vista a liberdade obtida pela exposição virtual da mercadoria, ampliou desmesuradamente a diversidade da oferta com a finalidade de aumentar o tráfego, penetrando em mercados onde não dispunham do conhecimento necessário à gestão eficiente do capital comercial investido[6]. O preço a pagar pelo aumento do tráfego usando este artifício é salgado. Isso se deve à redução rotação média de estoque, ao aumento do estoque invendável, à ampliação da área de armazenagem e mão de obra da logística interna e à sofisticação crescente do sistema de gestão de armazém. Justamente na redução dos custos citados reside uma das grandes motivações para a implementação do marketplace.

As principais despesas

Quanto às despesas, as alterações também são significativas, notadamente quanto à mão de obra, propaganda e logística externa.

Quanto à mão de obra, o comércio eletrônico intensificou o emprego na logística interna e no atendimento aos clientes, justificando contínuos investimentos em desenvolvimento de sistemas para aumentar a produtividade do trabalho. Em termos comparativos, o varejo físico emprega menos mão de obra na logística interna[7] e, quanto ao atendimento aos clientes, ele é exercido pelos balconistas no ponto de venda. Porém, no grande comércio eletrônico, a maior despesa de mão de obra concentra-se na tecnologia de informação, indispensável à diferenciação de mercado, onde os salários são altos e tendencialmente crescentes.

A despesa com propaganda no comércio eletrônico é compulsória e cara. Compulsória por não mais contar com o poder de monopólio territorial do ponto de venda, definido como área em que ele não sofre restrições em caso de aumento de preço. Cara, tanto por estar sujeita aos preços estabelecidos pelo oligopólio dos meios de comunicação via internet, como por ser mais efêmera, em razão dos benefícios ao consumidor trazidos pelos comparadores de preço a estimular a concorrência. Não é por outro motivo que o marketplace justifica parte de seus ganhos por nele embutir a despesa que o lojista inevitavelmente teria com propaganda.

A despesa com frete, a grande vilã do comércio eletrônico, é estranha ao varejo físico. Ela faz parte da natureza do comércio eletrônico e sua gratuidade absorve parte substancial da margem. A origem da gratuidade do frete é polêmica. Alguns a atribuem à concorrência entre as grandes lojas do varejo eletrônico, outros atribuem à expansão das vendas do comércio eletrônico frente ao varejo físico, equalizando preços. Caso tal prática fosse apenas interna ao comércio eletrônico, sua eliminação seria mais fácil, porém, em que pese sua redução gradual, ela persiste, sinalizando que a estratégia de expansão do volume de vendas tem se sobreposto à obtenção da rentabilidade.

Algumas das alternativas

À luz da estrutura e da composição do capital das lojas virtuais e de suas principais despesas seguem algumas das alternativas usadas para o aumento da lucratividade do canal: redução de custos salariais por terceirização de atividades, redução de custos pelo aumento da escala de produção em conjunto com investimentos de suporte em tecnologia, estratégias de ganho de participação de mercado, continuidade da expansão da oferta sem custos de capital, incorporação de habilidades comerciais na plataforma[8] e gradual transformação da plataforma tecnológica de venda em fonte de receita[9].

A terceirização de serviços

Como decorrência da existência de setores internos intensivos em mão de obra, cujo trabalho pode ser altamente dirigido e controlado por sistemas computacionais, e da inexistência da negociação presencial, o comércio eletrônico, inicialmente, optou por terceirizar as atividades de logística interna e de atendimento ao consumidor. O objetivo era reduzir o custo operacional e transferir a terceiros as dificuldades geradas pela sazonalidade da demanda de mão de obra destas atividades. No entanto, a experiência mostrou que a qualidade do serviço foi negativamente afetada basicamente por dois motivos: as atividades terceirizadas não eram laterais, estavam diretamente associadas a fatores críticos do próprio negócio e, segundo, como expressão de sintomas do processo integral, elas se constituem num dos principais objetos de adaptações funcionais, seja por exigência do mercado, seja melhorias definidas internamente.

Aumento do nível de atividade e suporte tecnológico

O comércio eletrônico é um canal de vendas alternativo ao comércio tradicional. Neste sentido, ele tem tido a preferência crescente de consumidores pelos serviços que agrega à mercadoria vendida, razão pela qual tem havido um descolamento temporário do seu volume agregado de vendas em relação ao varejo físico, à produção industrial e à renda dos consumidores. A concorrência entre canais não aumenta a demanda, apenas a subdivide.

A estratégia usada para ganho de mercado tem sacrificado a lucratividade em prol do volume de vendas que, entre outras, pode ser explicada pelas seguintes razões: (i) a crença de que a liderança de mercado será o fator determinante no aumento de valor de mercado da empresa; (ii) o fortalecimento na negociação com os fornecedores para obtenção de vantagens nos preços de aquisição em função do volume de compra[10]; (iii) o aumento da capacidade de investimento em tecnologia para inovação em funcionalidades e melhoria dos padrões de atendimento; (iv) acompanhar o crescimento do mercado do comércio eletrônico em detrimento do tradicional e (v) diversificar as fontes de geração de receitas com a inclusão da prestação de serviços tecnológicos a terceiros.

Ganho de participação

A virtualidade ou ubiquidade das lojas virtuais determinam estratégias específicas de expansão do nível de atividades e de domínio de mercado.

O crescimento do nível de atividades das lojas virtuais está intimamente ligado ao tráfego, fator indispensável a ser trabalhado para que ele seja convertido em vendas. O tráfego é, principalmente, resultante dos seguintes fatores: (i) a marca, cuja penetração no mercado depende de pesadas e contínuas despesas em propaganda e marketing, orientadas aos meios de comunicação especializados, tais como buscas orgânicas em sites de pesquisa, e-mail marketing, redes sociais, links patrocinados etc.; (ii) a variedade de categorias para atrair o consumidor independente do que ele tem intenção de comprar, implicando forte impacto no capital de giro; (iii) a facilidade de uso e navegação e o tempo de resposta, características técnicas do site para evitar que o visitante abandone a loja; (iv) preço de venda competitivo, cuja possibilidade de atrair o consumidor está na razão direta do poder de mercado da loja; (v) a fidelização do consumidor, função da qualidade e estabilidade do nível de serviço, no afã de ganhar a confiança do consumidor pelo cumprimento do contrato de compra e venda registrado no site (prazo de entrega e pronto atendimento pós-venda).

Continuidade da expansão da oferta

Um dos índices de desempenho de lojas físicas é o faturamento por metro quadrado de área útil. Isso se deve à necessária diluição de custos fixos, principalmente o aluguel da loja. As mercadorias à disposição dos consumidores disputam o espaço[11]. O comércio eletrônico não tem tais limitações por não ter ponto de venda físico e por centralizar o estoque em grandes centros de distribuição, restringindo-se à gestão do capital circulante. Tal característica permite que mercadorias comercialmente inviáveis no comércio físico de massa sejam ofertadas pelas lojas virtuais, por exemplo:  mercadorias fora de linha, mercadorias importadas com preço unitário elevado, mercadorias com pequenos e declarados defeitos e, mais amplamente, produtos com baixa rotação de estoque.

A contradição entre o aumento da variedade e o aumento de custos logísticos e administrativos associados tem sido resolvida pela oferta no site de mercadorias de propriedade e posse de terceiros com uso da plataforma de marketplace. Assim, o chamariz da variedade é mantido e o risco comercial é transferido aos lojistas associados.

Percepção de mercado e preferências do consumidor

A eliminação do ponto de venda como local de realização das mercadorias e os recursos tecnológicos usados pelas lojas virtuais, mudam o relacionamento entre o setor produtivo e o comércio, além de agilizar a gestão comercial.

O conhecimento imediato da demanda, seja ela por mero interesse informativo do consumidor ao “passear” pelo site ou pela compra em si, melhora a percepção dos sinais de mercado, permitindo ajustes na oferta (preço, visibilidade e ressuprimento de estoque) e, no limite, vender antes de comprar, possibilidades que estão fora do alcance das lojas físicas.

Dados históricos de compra, principalmente de mercadorias de consumo regular, permitem conhecer os hábitos e frequência de compra dos consumidores e, com isso, direcionar as ofertas (casos mais notórios na comercialização de bebidas, mercearia seca, livros, vestuário, calçados etc.).

A automação das habilidades comerciais

O ambiente fortemente concorrencial de mercado e a rapidez com que a loja virtual pode se modificar por ser altamente dependente de software, impulsionam a inclusão das práticas comerciais do comércio tradicional e estratégias de comercialização nas plataformas tecnológicas.

As “habilidades” comerciais vêm sendo alvo de intensas pesquisas com o objetivo de convencer o consumidor a comprar, mesmo tendo com o obstáculo da ausência da figura do vendedor[12]. Neste sentido, destacam-se os esforços em descobrir as preferências do consumidor através de suas escolhas registradas em bancos de dados e exploradas por aplicativos especiais a fim de bem direcionar os gastos com propaganda; o arranjo da vitrine da Web Store através de experimentos que capturam a focalização do olhar; a indução de outras mercadorias dada a compra de outra correlata (cross-selling) ou de maior preço e qualidade (up-selling); o conhecimento das ofertas dos concorrentes em tempo real a refinar a formação do preço de venda em consonância com o estoque disponível; o conhecimento das vendas dos grandes fornecedores aos concorrentes; o conhecimento das mercadorias observadas pelos visitantes que não concluíram a compra; o conhecimento do retorno dos investimentos em propaganda; o conhecimento em tempo real da rotação, comportamento tendencial e disponibilidade de estoque de cada artigo etc.

As habilidades gerenciais também têm sido fortemente apoiadas por processos computacionais: a automação da análise de crédito e regras nas condições de pagamentos; a robotização do ressuprimento de parte das mercadorias; o comando e controle absolutos da movimentação de mercadorias nos armazéns através da automação da armazenagem, da separação e da expedição; rastreamento da entrega de mercadorias associados ao disparo automático de ações corretivas e do atendimento pós-venda. Não é difícil concluir como tais recursos economizam mão de obra reduzindo o capital comercial total. No entanto, a despeito de tais avanços em produtividade, mantem-se o fundamento do varejo: saber o quê e quanto comprar para rapidamente vender, rentabilizando o capital adiantado.

Venda direta

A virtualização do processo de venda, a difusão das técnicas que envolvem o atendimento físico de pedido de compra e o atendimento ao consumidor permitem que os serviços comerciais possam ser contratados sem a intervenção do comerciante.

A independência em relação ao ponto de venda, a locação da plataforma tecnológica para a captura de pedidos, o aperfeiçoamento das técnicas de autenticação do cartão e de pagamento, a diversidade de meios de pagamento, a transformação do sistema de gestão integral do atendimento dos pedidos de venda, o controle completo da entrega em domicílio e a autonomia das agências de publicidade digital, têm como consequência a possibilidade de inserção direta do produtor no comércio de algumas categorias. As particularidades comerciais crescentemente formalizadas e embutidas em processos computacionais avançam no sentido de sua autonomia em relação ao varejista e à mercadoria comercializada, tornando-se um produto em si. Dessa forma, o principal componente do capital fixo – a plataforma tecnológica – transforma-se numa fonte de receita adicional e passa a ser usada como serviço na intermediação da venda de mercadorias de terceiros, inclusive no controle da oferta em mercados de serviços[13]. Neste sentido, o comércio eletrônico se contradiz ao se transformar num suporte tecnológico para a venda direta da indústria[14].

A lucratividade

Publicamente, pouco se fala sobre a lucratividade do comércio eletrônico. Não são alvissareiros os poucos dados públicos referentes ao assunto no Brasil[15], no entanto, os investimentos continuam sendo feitos.

O pequeno varejo virtual tem sido impulsionado pela ausência de barreiras de entrada em termos de capital e tecnologia (custo do software mínimo está em queda e melhoria de qualidade), pelo fascínio pelo empreendedorismo por parte de alguns (ter seu próprio negócio), pela redução dos postos de trabalho nas grandes corporações para outros, pela complementaridade em relação ao preexistente varejo físico, pelo ganho de experiência comercial ao operar informalmente no mercado etc. Além das habilidades comerciais, o lucro provém da intensa auto exploração do trabalho de seus proprietários (factótum). O mercado das pequenas lojas virtuais é concorrencial, em outros termos, segmento do mercado onde “os fracos não têm vez”.

Para as grandes lojas, os interesses são de outra ordem. As grandes corporações que estão por trás das lojas virtuais de grande porte são obrigadas a investirem no novo canal de venda, mesmo que seja deficitário, sob pena de não adquirirem a cultura tecnológica necessária para estarem presentes neste canal no futuro. Entre outras, destaco duas razões explicativas: o desenvolvimento tecnológico tem sido internalizado (indisponível na academia e é dependente de conhecimento acumulado) e a incerteza quanto às possibilidades a serem abertas pela tecnologia aplicada ao comércio – a rapidez do desenvolvimento tecnológico desnorteia os investimentos. Este caráter praticamente obrigatório do investimento em tecnologia aplicada ao comércio, associado ao experimentalismo facilitado pela virtualização de seu principal ativo, tem impedido que a avaliação do negócio seja feita à luz do clássico e implacável retorno sobre o capital investido.

Fernando Di Giorgi

Publicado na edição 35 da Revista e-commercebrasil em outubro de 2016

[1] Área de armazenagem coberta, número de docas, estruturas de armazenagem e equipamento de movimentação de materiais.

[2] Como resultado da diversidade da oferta, do fracionamento do recebimento e da expedição, da multiplicidade de armazéns, da redução do tempo de separação e do aumento do volume de pedidos atendidos.

[3] Front, análise de fraude, processamento do pagamento, reserva de estoque, faturamento, rastreamento da entrega e atendimento aos clientes.

[4] Duas razões justificam o desenvolvimento como capital fixo: contabilmente, ele tem sido classificado como imobilizado e pelo fato de ser, praticamente compulsório.

[5] Para se ter uma ideia deste custo, no Brasil, há lojas que empregam mais de mil engenheiros de computação.

[6] Alguns deles, muito exigentes em termos de conhecimento do mercado fornecedor (qualidade, prazo de pagamento, pontualidade de entrega, capacidade e flexibilidade produtiva, possibilidade de discriminação de preço por quantidade etc.) e das preferências do consumidor (segmentação, sensibilidade a preço, artifícios de fidelização etc.)

[7] O recebimento de mercadorias é facilitado pela menor diversidade, maior lote de compra e unitização (majoritariamente paletizada) mais adequada à movimentação e a separação restringe-se apenas ao reabastecimento das lojas da rede.

[8] Por exemplo: conhecimento das preferências dos consumidores, melhoria na reposição de estoque e objetivação da propaganda.

[9] Marketplace, aluguel da plataforma – front e back-office), segurança de site, conhecimento de preço da concorrência etc.

[10] A redução do preço de aquisição está para o comércio assim como a redução dos custos de produção está para a indústria.

[11] A localização da mercadoria no ponto de venda é parte integrante da negociação da aquisição e objeto de análise para reduzir o tempo de circulação dos clientes pela loja.

[12] Esta é a arena de combate dos vendedores de software de front explorando alternativas de aumento da conversão.

[13] Exemplos: Uber, Airbnb.

[14] Por exemplo, vide edição de 20 de julho de 2016 do Valor Econômico com o título: “P&G tente vender diretamente ao público nos EUA”. No Brasil, casos clássicos de venda direta de produtos de alta tecnologia: Motorola e LG.

[15] São poucas as empresas com capital aberto e algumas delas ainda agregam dados dos canais.

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